Repostando! Gosto desse conto, mas sei que ele precisa de alguns ajustes... Resolvi repostar depois de ler Kafka Revisited, do Faustus e O Pianista, do Personna.
Espero que leiam, critiquem, falem.
Chero!
==========================================================================================
O Piano
Elara Leite
Escute, meu bem, o piano toca enchendo a sala de sons inaudíveis aos que não possuem a devida sensibilidade. É preciso ter tato para ouvir este piano. Seu som ressoa nas flores do jardim, no sibilar dos ventos ao nosso redor. Querido, silencie para ouvi-lo. Ele está além desses dedos esguios que tocam suas teclas, além da surdez da vida momentânea. Sua música toca o mais profundo de nossos desejos neste momento em que te olho nos olhos. É bem verdade que nunca se deve olhar alguém nos olhos... Olhos denunciam a alma encantada – ou envenenada.
Paixão de minha vida, nem mesmo a mais bela sonata poderia alcançar nossos corpos agora. A música transcende nosso corpo físico, está em um nível mais elevado, em nosso coração. Ela toca nessas paredes rosadas, insensíveis às suas vibrações. Mas não, mesmo elas vibram no exato toque das notas musicais. Esta musicalidade pode ser sentida por nossos pés, neste tapete felpudo em que descalços descansamos os pensamentos atribulados. Oh, como é simples e bom um minuto de paz! A paz que nos roubaram há tempos, meu amor.
Sinta, os móveis de mogno escuro parecem chorar diante deste angustiante e belo som. A escrivaninha em que nos debruçamos para escrever pede clemência, transborda diante da inspiração de um novo texto. E esse teu olhar, que não me deixa sequer sair do lugar, fere impiedosamente os papéis brancos, lisos, esperando para ser escritos. O piano rouco ressoa nossos pensamentos como fumaça ébria a preencher a sala. Nada mais existe além dali. Não há vida, não há mundo, não há tinta nem caneta.
Estáticos permanecemos. A janela clama ao suicídio da morte, clama num abafado grito a favor da vida que habita em nós. A toalha de mesa esvoaça com uma brisa noturna que anuncia a noite sendo interrompida pela alvorada. Quanto tempo passamos assim, meu bem! Eu toco, mas parada estou. O movimento é aquém a qualquer referencial, involuntário. Suspensos e silenciosos ficamos ao toque deste olhar por horas noturnas e agora o sol se aproxima.
Terás que me deixar, minha fortaleza! Um momento terás que fazer isso, pois ao ponto que chegamos as coisas são irreversíveis. Piano que mata os sonhos, piano que reaviva as memórias... Oh, piano, não deixe que se vá meu sustentáculo! O piano ruge, a poeira ao nosso redor se esvai e podemos ver os primeiros raios de sol que entram tímidos pelo vidro da janela. Os olhos não mentem, percebo que nunca, amor, me tocarás novamente. Não me tocarás e eu também não pedirei que me abrace. Não existirá angústia maior o segundo que antecede tua ida.
Minha fraqueza, por que me descobriste? Me olha com o olhar de uma sombra que some com o sol, me olha com o olhar de quem nunca me viu. Por que me olha? Este banco em frente ao piano, este banco em que nos sentamos há horas é testemunha do teu olhar insistente. Este banco é nosso confessor, tocado pelos sons quase imperceptíveis aos olhos, mas invasor de nossos ouvidos desprotegidos. Teu semblante é sereno, inconsciente do pecado que comete. Tuas mãos são frias, posso sentir sua frieza mesmo sem tocá-las. Me vem à lembrança a última vez que tentei fazê-lo. É algo turvo, guardado dentro do mais profundo íntimo. É algo que nunca esqueci, mesmo tentando fazê-lo há milênios eternizados nesta sala.
Que tempo! Eras são minutos, minutos são eras, na relatividade tamanha deste teu olhar. Piano, toque mais uma sinfonia para nos entreter, é nosso último encontro. Meu bem, já refulge a aurora e teus olhos se despedem. Querido, não pode mais ficar? É terrível tua partida! O corte presente entre nós, o abismo aumenta cada vez mais. Agora tudo são distantes realidades, tudo são flashes de luz ao nosso redor.
Suave é nossa última palavra, sensível é nosso adeus. O piano toca suas últimas notas tristes, fúnebres. Arrisco-me a alcançar teus lábios, mas longe te encontras porque o dia nasceu.
O disco termina, dou por mim que já é manhã. Retomo meus papéis e termino de escrever isto para você, quando me dou conta que você nunca sequer existiu e que eu nunca toquei piano. Mas fica um gosto amargo no ar, um gosto de algo que já aconteceu... Coloco a primeira música novamente. Acho que não sairei hoje.