Eu tendo a concordar com o Madruga, e vou aproveitar a insônia para tentar explicar porque.
É infrutífero focar a discussão puramente na forma poética, no sentido mais estrito e apertado possível do termo. Por quê? Porque como toda arte, a poesia não é isolada do mundo: as modificações na forma acontecem por diversos fatores, a maioria deles externos à poesia em si. E como nenhuma arte é isolada do mundo, dificilmente são só as modificações na forma (mais uma vez, no sentido mais estrito do termo) que causam seus sucessos e/ou suas crises.
Parte um, o materialismo histórico: Nem sempre houve romances; nem sempre haverá romances. Assim que a escrita se solidificou como principal vetor de transmissão de informação, a epopeia oral começou a perder espaço. Por causa da escrita, as fórmulas mnemônicas -- como ritmo, rimas internas, número de pés, repetições, construções sintáticas pré-estabelecidas, fórmulas fixas -- perdem sentido. Não há necessidade de decorar se você pode consultar o texto. As grandes epopeias faziam sentido para os gregos antigos, já eram um anacronismo para os romanos: a lenda diz que a última coisa que Virgílio fez no leito de morte foi mandar botar fogo na Eneida. Sorte nossa que ninguém obedeceu. Mas o ponto é: o cara achava que a coisa que ele passou a vida escrevendo não ia fazer falta nenhuma. E, comparando com as funções que as epopeias gregas exerceram em sua sociedade, bom...
Avancemos um pouco a frente: a invenção da imprensa e outros fatores econômicos tornaram o livro o grande vetor da escrita. Isso faz com que boa parte da literatura seja pensada para este apoio. O romance (não só por isso) se torna a forma mais proeminente de narrativa, a principal porta de apreensão das artes literárias passa a ser a leitura, e não a audição. Óbvio que a poesia jamais passaria imune por isso.
Parte zero, a dialética (parte zero porque ela está em todas as outras partes e bagunça todas elas): O suporte influi sobre a literatura e a modifica. Essa nova literatura influi sobre o suporte, e o modifica. Mantenham isso em mente durante a leitura desta mensagem. Se eu não dormir, tentarei voltar a este ponto depois.
Parte dois, a luta de classes: Nem sempre houve romances; nem sempre haverá romances (sim, de novo). Acho que foi o Hegel que definiu: o romance é a epopeia da burguesia. Algumas pessoas objetaram o termo epopeia, ninguém importante discordou completamente. Por um lado, a criação da imprensa e a produção massiva do livro como suporte e como mercadoria permitem que a classe que controla o comércio, a nova forma hegemônica de economia, controle a distribuição da forma hegemônica de literatura. Por outro, o romance se torna um dos meios de transmissão dos valores desta nova classe que surge e ascende ao poder político também, falando de conteúdo mesmo. Mais uma vez, com a poesia não é diferente. Dialeticamente, o conteúdo de boa parte dos romances e dos poemas em dado momento passa a ser a crítica e até a negação de tais valores. Então, juntando: nem sempre haverá romances porque novas tecnologias e desenvolvimentos econômicos podem favorecer outras formas, assim como permitir que novas classes ascendam ao poder, ou mesmo valores da mesma classe hegemônica podem encontrar formas que melhor os favoreçam.
Parte um bê, a poesia no fim do século XX e início do século XIX: um autor que eu gosto muito, um tal de Walter Benjamin, uma vez disse algo mais ou menos assim: quando a fotografia foi inventada, gastaram mais ou menos cem anos em discussões infrutíferas se ela era arte ou não, quando deviam ter começado logo a discutir SE ela alterava a natureza da arte (e como essa natureza era alterada). Bom, da fotografia até hoje, inventaram muito mais coisas com potencial para alterar a natureza da arte: por exemplo, o cinema, os cds, a internet, o mp3, (sem contar outras artes) e isso são só as coisas que meu cérebro amador e insone consegue lembrar. E eu tenho um misto de duas impressões: a) que a poesia vem perdendo sua capacidade dialética, isto é, sua capacidade de ser alterada e alterar toda essa tecnologia que surge (ela sofre influência, mas não influencia de volta); b) nós temos dificuldade de perceber que as novas tecnologias e desenvolvimentos econômicos alteraram a poesia e ficamos pensando numa natureza, numa definição que não faz mais sentido.
Estamos acostumados a pensar na poesia de livro, do fim do século XIX e início do XX, e nem percebemos que o avanço da música popular cantada, mais todo o desenvolvimento econômico e tecnológico da indústria fonográfica podem ter sido o ônibus em que a poesia subiu enquanto ninguém olhava. Olhe a música brasileira, por exemplo. Sem entrar na discussão qualitativa, quem foi chamado de poeta nesses últimos tempos enveredou-se por lá (Renato Russo, Cazuza, Humberto Guessinger, Chico Buarque, Gilberto Gil, Vinícius de Moraes, Rogério Skylab, etc.). Quando pensamos em movimento poético relevante moderno, temos sorte se lembramos dos concretistas, mas esquecemos do sucesso internacional e da longevidade do rap, que é um acrônimo para Rhythm And Poetry. Entretanto, se eu quiser ficar numa definição mais ortodoxa de poesia, o que de relevante foi feito até agora usando o cd? O .mp3? A internet?
Nada, não muito, porque por ora não é o tempo, nem o espaço dela. Saraus, fóruns de internet, livros, podem render coisas interessantes. Mas são assim: nós, conhecidos, amigos, mandando bilhetinhos e cartas um para os outros. Um bilhete que se passa escondido da professora para o colega ao lado, por mais brilhante que seja, é só um bilhete dividido entre duas pesssoas. Pode ter sentido profundo para elas, mas não tem muita relevância. É bom que passem e se gostem e se riam. Mas não tem muita relevância. Da mesma maneira que quem é que tem acesso à internet e manda cartas hoje? E se não o fazemos, é porque somos preguiçosos, obtusos, a dificuldade (embora recompensante) nos afasta? Não, é porque temos outras ferramentas à disposição, que tornam as cartas em papel obsoletas.
Editado: Texto enorme e eu com sono mas sem conseguir dormir. É claro que passou um monte de erro. Aos poucos eu vou arrumando, mas nada que modifique o conteúdo.