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Mensagempor Lanzi em 12 Set 2011, 20:34

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Há uma lenda do Hindustão que conta como, há muito tempo, um escultor aprisionou-se (até que ponto foi ajudado nisso?) em sua própria criação. Não é estranho lembrarmo-nos de Dédalo, mas, ao contrário do anônimo escultor, o pai de Ícaro foi confinado pela crueldade do rei a quem emprestou seu talento e não pela sua obsessão.

O Imperador Dasagupta - em uma época acessada registrada em nossos calendários oníricos - ordenou a seus súditos que lhe dessem como oferenda o talento dos melhores artistas que vivessem em suas cortes. A oferenda deveria vir no formato de alguma escultura, tesouro, pintura ou poema. Outra versão da lenda conta que o Imperador deu liberdade total aos artistas de seu território devido à tristeza e ao tédio que atormentavam seu espírito naqueles dias. Queria, desta forma, ser surpreendido.

No inverno todos expuseram suas criações. No pátio principal de seu palácio, aberto naquele dia especial para todos os habitantes do reino, os sentidos humanos deleitavam-se. Tapetes ricamente trabalhados e ornados em ouro e jade, músicas eloqüentes que entoavam melodias divinas, poemas inspiradores e esculturas tão vivas que os que viam juravam ser gente. Todavia, apenas um homem em todo o pátio não tinha obra alguma para expor ao Imperador, que chegava com toda anunciação e pompa.

Dasagupta apreciou todas as obras, congratulou os seus criadores e ficou feliz por ter em seus domínios os artistas mais talentosos do mundo. Naquele instante pôde se esquecer do tédio de seus dias. Ao ver, contudo, o anônimo artista, parou diante dele com uma expressão confusa – mais admirada e surpreendida do que antes – e o indagou:

- Qual é a tua obra, nobre escultor? Não vejo diante de mim nada que possa satisfazer o meu espírito.

Como resposta o escultor ajoelhou-se e com a mão direita riscou uma linha reta na areia do pátio.

- Está minha obra, ó grandioso Imperador. Mas não está completa.

- Tens até o verão para concluí-la porque no próximo verão reunirei novamente estes que aqui estão para produzirem obras melhores e para que eu possa contemplar uma arte ainda mais bela. Ordeno aos meus homens que esta obra aqui permanecerá onde está enquanto continuar incompleta e ninguém deverá tocá-la.

O homem apenas assentiu com a cabeça e neste momento toda a felicidade que preenchia o espírito do Imperador até então, e todo o tédio que pudesse revisitá-lo, foram substituídos por uma estranha apreensão que cresceria em seu coração de maneira insuportável, consumindo todo o seu pensamento.

A notícia não foi recebida sem tumulto. Especulavam sobre o tal artista e sua obra. Especulavam, sobretudo, a respeito da sanidade do Imperador: ele estaria promovendo outra exposição somente para alegrar-se ou porque estava curioso em ver completa a obra daquele desconhecido escultor?

No verão, portanto, os mesmos artistas, e ainda outros, voltaram ao palácio para exporem criações ainda mais belas que as anteriores. Elas careciam de adjetivos que exprimissem tanta beleza e grandiosidade. Não era exagero dizer que no mundo não havia lugar em que estivesse reunida tanta poesia e tanto talento. Na natureza ninguém encontraria criações tão prodigiosas. O Imperador reencontraria sua felicidade. No entanto, a obra do escultor anônimo continuava como da última vez.

A cerimônia repetiu-se, mas Dasagupta dessa vez não deu tanta atenção às outras obras e quando inquiriu o artista a respeito da linha continuar inalterada este respondeu com um gesto curioso que levou mais tempo do que da última vez. Cavou mais profundamente e aumentou a extensão e a largura da linha na areia do pátio, mas disse ao Imperador que ainda estava incompleta e este lhe deu até o próximo Inverno para que a terminasse. O escultor assentiu com a cabeça.

A lenda diz que esta história se repetiu por cinqüenta, cem ou até mil anos, com o escultor aumentando a linha apenas em sua extensão, largura e profundidade. É claro que, dependendo da versão em que se encontra a lenda, o tempo em que o artista dedicou à confecção de sua obra mais o tempo em que o Imperador aguardou ansiosamente ao seu término (pois lhe dava como prazo sempre duas estações) podem sugerir que o palácio acabou por ser consumido pela linha e mais tarde até o próprio reino. Isso pode explicar, por exemplo, o silêncio do relato sobre os outros artistas que, ao se darem conta do interesse do Imperador por aquela obra em contínua criação, abandonaram quaisquer pretensões de impressioná-lo.

O escultor morreu esquecido em sua linha – agora um fosso de dimensões insondáveis. Seu corpo não podia ser visto devido à escuridão do fosso. O Imperador, em freqüentes ataques de loucura, quedou convalescido em seu trono e seus súditos e servos temiam que não voltasse à razão. Não se sabe se esqueceu do escultor ou se o que o levou à loucura fosse a sua incapacidade de pensar em outra coisa.

Cabe a nós especularmos sobre os motivos de tal lenda ser contada até hoje.
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Re: A Linha

Mensagempor Emil em 12 Set 2011, 21:12

Hahaha, excelente, terminar o conto transformando a narrativa em ela mesma outra linha!
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e em seguida o reino de Deus virá por si mesmo.

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Emil
 
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