Cena no Beco da Cândida

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Cena no Beco da Cândida

Mensagempor Mirallatos em 19 Mai 2011, 13:38

Toda noite, quando se acendiam as luzes do Girândola, também raiava o Beco da Cândida. Um espetáculo estava prestes a começar ali, para um público inexistente, atores inconscientes de sua representação. Eles vinham e se sentavam nas mesinhas redondas, dentro dos cones coloridos e luminescentes que emanavam de pequenas lanternas artesanais. O bar era a grande atração naquele palco suburbano, cujas auras coloridas pareciam escolhidas a dedo por cada cliente. Naturalmente os alegres optavam por cores alegres, enquanto os tristes acatavam tons frios, luzes que, por fim, expunham o humor dos visitantes num drama individual. Assim era o preâmbulo da noite, embora raramente uma história merecesse aplausos ao final.

Os bares do beco tinham lá seu charme, mas graças ao Girândola e seu visual, a cena boêmia ali era diferente. Havia mais que predileção por parte daquela gente, talvez soubessem que eram figurantes de estórias pagas com cerveja barata. Sentiam-se, provavelmente, atraídos pela combinação alegórica das cores e músicas melancólicas, ora sobre traição, ora sobre amores perdidos. Tudo estranhamente harmonizava com aquela ruela escura: o céu, como parte do cenário, nada mais era que uma teia de varais entre os cortiços, enquanto as janelinhas cortinadas eram o proscênio. Essa paisagem talvez fora a razão de Paloma, nossa primeira personagem da noite, ao escolher aquele local.

Quando a primeira canção começara, ela já estava ali, sentada, sozinha, sob o calor intenso de uma das lanternas vermelhas, ainda que seu aspecto fosse frio. E como em qualquer entrada de peso, muitos olhares dirigiram-lhe a importância devida. Paloma era alta, esbelta, com pernas e braços longos, maquiagem e unhas muito bem trabalhadas num vermelho que combinava com as rosas estampadas em seu vestido: um tomara-que-caia de babados. Ha a vida provavelmente lhe foi generosa, aparentava ter entre quarenta e cinquenta anos, mas conservava um ar de jovialidade. Parecia, sobretudo, uma madame da alta classe, protagonista de feminilidade exótica entre as mulheres que frequentavam o ambiente.

Mas Paloma, como dito, apesar da aura calorosa, estava fria e alheia a todo o resto. Em seu rosto, impressas como marcas num papel amassado, saltavam rugas insistentes de tristeza que, combinadas aos olho marejados e a luz rubra da mesa, tornavam ainda mais dramática aquela cena. Atriz do próprio drama, atuava brilhantemente, deixando-se levar por alguma dor que arrancava lágrimas espontâneas. Entre um gole e outro de cerveja, essas gotas se precipitavam feito faíscas rosto abaixo, umedecendo uma pequena fotografia sobre a mesa. Havia, também, um cigarro aceso, edificando tantas cinzas quanto seu coração demonstrava: perdia-se em alguma lembrança, controversa àquela imagem.

Algumas vezes o silêncio tomava conta do Girândola, normalmente quando alguém pedia para trocar o ritmo da música, que, por sua vez, mudava também o da noite. As conversas viravam burburinhos, e estes, se extinguiam por alguns segundos. Mas Paloma parecia gritar sem ser ouvida e quanto mais expelia seu drama interior, mais aquela cena ganha ares de tragédia. Em seu rosto alternava um doce choro com um sorriso amargo. Por fim outra queima tornou-se física, a do dedo, queimado por um cigarro.

Logo uma marchinha carnavalesca começara a tocar e Corisco entrou em cena. O palhaço, nosso segundo personagem da noite, foi de uma mesa a outra fazendo seu trabalho: o malabarismo de garçom. Era jovem e gracioso em sua atuação, e os trejeitos delicados só lhe tinham a adicionar na fantasia de pierrot.

Corisco ainda não havia, verdadeiramente, notado Paloma até chegar em sua mesa. Distraído em seu ofício, pretendia, ao abordá-la, perguntar se queria outra bebida, mas acabara pasmo ao ver a foto e como que por reflexo, arregalou os olhos levando a mão á boca. Ela, trêmula, checava a queimadura entre os dedos.

A cena presenciada pelo garçom era catártica e nossa primeira personagem protagonizava-a sem perceber. Em tempo o palhaço se recuperara do deslize oferecendo outra bebida. Foi aí que a luz avermelhada da lanterna engoliu o pierrot, tornara-o parte da história de Paloma. Esta, por sua vez, notara-o, viu a roupa graciosa de garçom-palhaço, sua expressão tristonha e ao mesmo tempo delicada, inocente. Ele lhe abrandou as rugas no rosto e encarou o trêmulo azul de seus olhos, o preto de seus lábios vacilantes.

Continuou encarando-o num silêncio avaliador. Ficaram se olhando por alguns instantes, ela sem esconder a foto, ele sem conseguir esconder que vira o conteúdo. Havia algo a mais naquela cena e Corisco parecia desconfiar do que se tratava, pois não era a primeira vez que o encaravam assim nas mesas do Girândola:

– Me queimei. – constatou Paloma, mais uma vez.

– Eu vi. Precisa de algo?

– Um cinzeiro.

– Algo mais?

– Viu a foto? – Retornou à melancolia, engoliu alguma mágoa.

– Acho que sim – Respondeu o Corisco, meio irrequieto. Parecia incomodado com algo, com a situação.

– Gostei da sua voz. É suave. – Disse Paloma, após acender outro cigarro.

– Obrigado Senhora... gentileza de sua parte. Aceita mais uma cerveja?

– Sim.

Saiu aliviado. Não fosse a maquiagem branca, Corisco denunciaria na pele seu enrubescimento. Paloma acompanhava cada passo como quem reavalia e busca certeza. Olhava seu corpo dos pés a cabeça. Era baixo, pisava levemente no chão, atraente sem querer ser. Ele entrou no quadradinho amarelo que era a do Girândola, e pouco depois saiu com algumas cervejas na bandeja. Visitava as mesas sorridente, adentrava nas esferas de luz, mas nenhuma ressaltava sua beleza como a luz vermelha da mesa em de Paloma. Mas quando ele adentrara, inocente, noutra aura rubra, onde havia um casal enamorado, ela pareceu incomodada.

O casal estava bêbado. Por goles mais fortes que a bebida. Tomados por uma paixão. E Paloma observou, impotente, o casal cochichar algo. Em seguida ambos repetiram a ação no ouvido de Corisco, que esforçava-se para para ser educado ao se livrar daquela teia nitidamente lasciva. Quanto mais tentava se afastar, mais próximo estava da embriaguez do casal. A maquiagem de Corisco acentuava suas expressões, algo que o tornava ainda mais atraente aos olhos de Paloma. Foi aí que uma mão sorrateira lhe acariciou a cintura, escorregando para o meio das pernas. O rosto do palhaço vacilou e Paloma interveio:

– Ei rapaz, minha cerveja! – bradou imperiosa sobre seu salto.

Oportuno, Corisco pediu desculpas ao casal e saiu aliviado da mesa, não sem antes perceber uma pantomima retratando sexo oral. O casal gargalhou e logo voltou ao seu exercício explícito de desejo. Dariam, eles, bons personagens, mas numa outra história, algo sobre volúpia e vulgaridade. Sobre amor.

Agora Paloma e Corisco estavam frente a frente novamente. Se encararam por alguns instantes, pareciam ver mais do que realmente viam, talvez além das personagem encenadas ali, talvez os papéis verdadeiros:

– Só queria te livrar daqueles pervertidos. Ah! e a outra cerveja, claro.

– Tudo bem, não sabia o que fazer. Preciso do emprego e o casal é da casa, estão sempre naquela mesa e sempre bebendo em excesso.

– E com excessos, pelo visto.

– Sim.

– O que vai fazer depois daqui? Queria te ver sem essa maquiagem. – Paloma parecia ter esquecido da fotografia, mas logo pegou sobre a mesa.

– Senhora, eu...

– Não se preocupe, não vou meter a mão entre tuas pernas.

Corisco riu. Ele parecia estar mais tranquilo agora, e simpatizara com Paloma, afinal.

– Não tenho nada pra fazer.

– Aceitaria ir a um outro lugar comigo?

– Pode ser.

Deixou a cerveja e voltou a trabalhar. A noite seguiu seu curso e, logo, à medida que os casais deixavam o local, as luzes iam sumindo como que anunciando o fim daquele ato.
Finalmente o Beco da Cândida estava silencioso e escuro, rutilavam apenas lâmpadas amarelas nas janelas dos cortiços. A única luz colorida ainda acesa no Girândola era a da mesa de Paloma. Ela estava lá, sentada, esperando Corisco voltar. Nosso personagem, por sua vez, saiu sem a roupa de palhaço. Tinha, agora, cabelo curto, meio punk, usava um jeans folgado e uma jaqueta enorme. Era outro, menos alegórico, mais real. Era Ângelo.

Caminhou até a mesa, entrou mais uma última vez na luz vermelha, abriu um tímido sorriso para Paloma, seus lábios estavam ressecados, seus dentes lhe denunciaram o cigarro.

Nossa personagem respondeu com outro sorriso. A foto ainda estava sobre a mesa, agora rasgada e úmida. Ela pegou um dos pedaços, como quem resgatasse o que realmente era importante ali, depois se levantou e começou a caminhar apontando a direção a Corisco, ambos saíram juntos da luz, da cena.

Para trás ficava a mesa, vazia, sem aura. A fachada do Girândola era única fonte de luz no panorama, projetando pela pequena porta um feixe amarelado em linha reta e terminando na mesa que há pouco Paloma ocupava. Da mesma porta saiu o bufão. O velho rechonchudo, em sua rotina, recolhia o lixo, arrumava as cadeiras e se trancava no bar para conferir o caixa. Depois dormia.

Notou o pedaço da foto enquanto recolhia os detritos, nele havia uma bela e jovem garota, vestia longas meias listradas e usava um nariz de palhaço. Algo naquela menina lembrava Ângelo. De quem seria o longo braço que abraçava ela, cujo restante do corpo naturalmente estava no outro pedaço da foto?

Não muito longe dali, na escuridão do beco, longe de qualquer cena ou palco, mas num epílogo necessário, Paloma e Corisco riam de alguma coisa:

– ...bom, melhor começar do começo. Qual seu nome?

– Ângelo. Ou melhor, agora você sabe que é Angélica.

– Prazer Angélica.

– E o seu?

– Na certidão está Ezequiel.


Ataualpa Pereira
Maio de 2011
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Re: Cena no Beco da Cândida

Mensagempor Lady Draconnasti em 19 Mai 2011, 17:02

Por acaso eu não esperava esse final e... ele me fez abrir um sorriso.
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