[TSag] Nos caminhos de Bujdret (Parte I)

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[TSag] Nos caminhos de Bujdret (Parte I)

Mensagempor Emil em 27 Abr 2011, 20:37

Nos Caminhos de Bujdret


Parte I – O Contato

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Foi isso mesmo, você estava certo, eu estava confundindo as datas. Sabe como é, às vezes o vinho é concentrado demais e afeta a memória da gente. Bom, sem contar o fato de a memória ter suas próprias trilhas tortuosas, mais misteriosas que as trilhas bruxuleantes de Avkhass. Sim, eu já andei algumas vezes por lá, e não é fácil, tenho que te dizer: às vezes você olha para trás e os resquícios do passo que você acabou de dar já foram engolidos pela floresta, e isso não é exagero de contador de histórias, nem glosa de quem quer se vangloriar de já ter sobrevivido a mais de uma excursão à floresta. Mas isto são outros assuntos, o que eu estava tecendo antes foi há mais tempo ainda, e, conforme você já me corrigiu, foi sim há cerca de vinte invernos, que é assim que a gente conta o tempo lá de onde eu venho. É, lá o inverno é rigoroso, é sempre um desafio a marcar a nossa vida, aqui vocês têm isso de mão beijada. Não, lá no norte todo inverno é potencialmente o último, e ainda assim, já sobrevivi a vinte desde o ocorrido. Mas aquele que se aproximava parecia até então o mais difícil, porque naquela época eu estava duro.

Foi mais ou menos por esse tempo, porque Tervat tinha acabado de perder o Forte de Mármore para A Liga dos Povos do Norte. Hoje vocês mais jovenzinhos e inexperientes conhecem o lugar como Narnad af Tanisdat, que é o nome que os povos de Bujdret deram a ele quando o conquistaram, mas nós só chamávamos de Mármore. Então você imagine a situação: pela primeira vez Tervat se dava conta que subestimara os povos do norte, e muito. A tomada foi basicamente um massacre, e o forte não era um povoadeco, mas um posto avançado e, pensava-se, devidamente guarnecido. Rá! que paulada no coração daqueles que se consideravam a grande joia do mundo, protegida pelo Uno. Cá entre nós, pra quem nunca se sentiu tão abraçado assim pela unidade, era mais ou menos claro que em algum momento algo daquele tipo fosse acontecer, mesmo que antes eu cresse um pouco mais que agora. Nós que batíamos o mato sabíamos bem que o lado de lá era capaz também de suas artes. Ainda assim, como todos daqui, fomos pegos de surpresa. Que só eu o quê! Tanto foi, que dois bujdretianos, bujdretel, que seja, estavam por aqui do lado de Tervat, e foi só assim que eu pude arranjar algum serviço naqueles dias conturbados. Mas me adianto um pouco, primeiro tenho que contar que não se arranjava serviço nenhum.

Pois bem, para quem ganhava a vida ajudando a explorar o desconhecido, trilhando pelos caminhos alternativos, protegendo os muquiranas que preferem arriscar uma rota insegura a gastar um pouco mais nas estradas apinhadas de pedágios e tributos que descem pelo sul e cruzam Chemkrë, ou acompanhando aqueles que não querem correr o risco de ter os segredos de suas cargas revelados, a situação endureceu. Foi assim que eu comecei minha vida de andanças: protegendo gente com muito dinheiro e pouco juízo que vai para o outro lado da fronteira fazer negócios escusos, e rastreando gente que fugiu ou foi arrastada para aqueles lados... Enfim, com medo de outros ataques, os governantes das províncias do Norte fecharam as trilhas que levavam à floresta e aos pântanos e proibiram as poucas caravanas comerciais oficiais que existiam então. Ninguém entrava, ninguém saía. Imagine, eu estava já há algumas semanas sem ser procurado nem para um trabalhinho de segurança sequer. Gastava meus últimos cobres num bar sujo de nome suspeito quando Oker veio me procurar.

Naquela época, todos víamos Oker como um pobre diabo, um malandro perdido em suas próprias malandragens sem sentido. O coitado era um mestiço, um bastardo de mãe bujdretel e pai provavelmente algum general de Tervat. Estrangeiro nos dois lados da fronteira, aqui lhe chamavam com o nome bárbaro, Oker, lá com o nome invasor, Eck, aqui um pouco pior, imagine alguém tão misturado num lugar em que se preocupam tanto com a pureza. Sua única vantagem nesse mundo era falar tão bem a língua daqui como a de lá – e nem tanta vantagem assim isso é, mas ele se virava com essa habilidade como podia, agenciando contatos dos dois lados e criando pontes temporárias. Ele já havia me indicado a um ou dois viajantes, e eu já havia apontado os lugares que ele frequentava a algum necessitado de suas travessuras, mas até então nunca havíamos trabalhado juntos. Por isso me surpreendeu quando ele apareceu e disse com seus trejeitos adquiridos na rua Ei, e se eu te disser que eu tenho um trabalhinho até arriscado, mas que paga bem? Na hora eu estranhei que ele me chamasse, mas hoje eu sei que ele suspeitava que eu fosse de confiança, porque nunca tratava eu mal os malvistos como ele, e porque se alguém ficava sabendo do que acontecera durante os trabalhos que realizei, não era de minha boca que a informação tinha saído. O quê, e isso eu contando agora? Ora, se você ficar interrompendo a história assim a todo momento, nós nunca sairemos do lugar!

Nós vamos para os lados de Bujdret, não vamos?, perguntei, mas ele só deu de ombros e moveu lábios e sobrancelhas como se dissesse “é só uma pergunta”. Dei uma olhada no meu caneco. Não teria dinheiro pra comprar outra dose, e as minhas provisões estavam acabando: em uma semana não teria mais o que comer. Pois sendo o preço justo eu descobriria a rota até a terra dos cinocéfalos passando por Avkhas, finalmente respondi. Eu sabia que não tinha muitas opções, deveria ter agradecido logo de cara o contato. Não precisaremos ir tão longe, não se preocupe. Encontre-me após a hora da recolha na porta dos fundos aqui do bar mesmo, e dizendo isso, deixou em meu colo discretamente um lenço com o sinal, sim, assim chamamos aquela pequena parte do pagamento dada antes do cumprimento do trabalho. Ele se levantou e saiu, e pude notar que quase ninguém reparou que conversávamos ou sequer que o pequeno malandro me entregara algo. Contei rapidamente as moedas, e fiu!, já havia recebido pagamentos inteiros menores que aquele mero sinal. Tentei esconder o sorriso bobo, paguei minha bebida, terminei meu caneco e saí do bar. Passei o resto do dia correndo atrás do material necessário para a travessia. Comprei cordas e ração, forrei minhas botas, remendei a capa e as bolsas, mandei afiar minha espada e meu facão de cortar matagal. A adaga ainda estava boa.

Quando estava bem escuro e a vila toda dormia, eu fui para o ponto de encontro. Apesar da escuridão, avistei um vulto que julguei ser Oker, e acelerei meus passos em sua direção. Mas a falta de luz prega peças na gente, e ao me aproximar, vi que eu estava muito enganado. Na verdade era um homem bem mais alto, que usava longas vestes negras, que esvoaçavam um pouco, apesar de serem um tanto quanto pesadas. Tinha o olhar e os traços duros e marcados, com olhos fundos de quem já viu muitas coisas nesta vida. Ele apenas me mediu com o olhar, e fez um leve cumprimento com a cabeça, como se já estivesse a minha espera. Eu disse olá e perguntei se ele também estava esperando alguém, mas ele respondeu numa língua que eu não entendia quase nada e que certamente não falava. Só sabia dizer que era falada do lado de lá da fronteira, e achei que entendi ele dizer o nome Eck. Hoje eu avalio que ele tenha me dito algo como Não se preocupe, Eck nos falou de você, logo ele estará aqui, mas naqueles dias eu só fiquei impressionado com sua voz forte e calma de quem sabe que está sempre no controle da situação. Ficamos alguns minutos ali, cultivando aquele silêncio forçado e levemente constrangedor, quando, escoltando alguém, Oker surgiu esgueirando-se por entre as sombras das construções. Quando eles ficaram bem próximos a nós, pude perceber que era uma moça bonita, bem cuidada. Tinha os traços dos povos do norte, mas não parecia ter todas as marcas de quem leva a vida nos pântanos. Provavelmente passara a vida, até aquele momento, bem protegida. Tanto ela quanto Oker pareciam ter passado por alguma excitação, imagino que trazer a moça em sigilo ao nosso encontro tenha sido a primeira parte do trabalho que lhe foi designado. Enquanto o meu contato me pedia desculpas pelo pequeno atraso, a moça e o homem cumprimentaram-se tanto quanto um cumprimento pode ser ao mesmo tempo efusivo e silencioso, e trocaram algumas palavras. Pude distinguir algo como “irmão” ou “família”, mas nem dei muita atenção. Você sabe, na nossa linha de trabalho, às vezes é melhor não saber e não perguntar.

Batzas, disse Oker, estes são Heezer e Lanya. Inclinei-me rapidamente, enquanto ele me dava os parâmetros da missão. Eu faria o que sempre faço: ficaria responsável por encontrar trilhas alternativas e proteger os dois viajantes. A segurança de Lanya era prioridade, e era provável que tentassem sequestrá-la durante a jornada. Tentaríamos chegar todos juntos ao destino, mas em caso de acidentes, era mais importante a chegada dela do que qualquer outro. Fazer com que ela escapasse sem ferimentos valia um bônus que quase dobrava o pagamento. Oh, então é disso que se trata, um resgate, pensei com meus botões mal costurados. Enfim, vamos para Bujdret?, perguntei. Vamos sim, mas antes, temos que dar uma paradinha em outro lugar. Não se preocupe, é caminho.
Editado pela última vez por Emil em 28 Abr 2011, 11:05, em um total de 1 vez.
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Re: [TSag] Nos caminhos de Bujdret (Parte I)

Mensagempor Madrüga em 28 Abr 2011, 01:04

Velho, eu curto muito seu jeito com fluxo de consciência. Dá uma cara muito diferente ao texto, deixa com um tipo de realismo difícil de definir. Adorei esse "grit" da história, o cara ganhando a vida como pode, gastando os últimos cobres (literalmente) no boteco, pegando um trabalho... agora estou curioso para saber como continua!
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Re: [TSag] Nos caminhos de Bujdret (Parte I)

Mensagempor Léderon em 28 Abr 2011, 09:16

Começar com a imagem da Noite Estrelada: 10 pontos para Grifinória. XD

Emi, seu jeito de escrever dá uma inveja profunda. Você é uma das pessoas que mais consegue dar vida a um personagem. Esse jeito de escrever da maneira que o cara pensa é demais, mesmo. Só o jeito que você descreveu os lugares já deixou com água na boca, agora quero muito ver a passagem por Avkhass!

Só fiquei um pouquinho incerto de uma coisa: ele está em Chemkrë, né? O fato de eu ter acabado de acordar não deixou isso muito claro. XD

E uma observação~ segundo parágrafo, uma repetição em "Hoje vocês vocês mais jovenzinhos" (só porque eu sou chato e preciso falar).
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Re: [TSag] Nos caminhos de Bujdret (Parte I)

Mensagempor Emil em 28 Abr 2011, 11:10

Obrigado vocês dois pelos comentários e pelas correções! Aos poucos eu vou ajeitando.

Sobre como a coisa continua: eu imaginei que seriam três partes, e estou com medo do negócio se alongar já. Essas histórias vão ganhando vida e às vezes escapam do controle da gente.

Boa pergunta sobre onde ele está. Pra responder, eu tenho que perguntar de volta assim: onde ele está contando a história, ou onde ele está quando a ação acontece?

E a Noite Estrelada é culpa do Youkai! Eu tive a ideia numa conversa com ele. Aliás, os nomes bujdretel foram sugeridos por ele também.

Obrigado pelos elogios, vou fazer força pra continuar merecendo.
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Re: [TSag] Nos caminhos de Bujdret (Parte I)

Mensagempor Madrüga em 28 Abr 2011, 12:00

Já é o terceiro com esse problema, :haha:

Vamos criar uma aposta para TERMINAR os contos, Emil e Led?
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