Café

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Café

Mensagempor Blackbird em 24 Nov 2010, 07:50

quando peguei Café no colo pela primeira vez.

tremia bastante, era uma filhota muito recentemente desmamada e saía de casa pela primeira vez. não soltava pêlos, não se mexia muito.

meu avô comentava sobre como as outras duas filhotas tinham cores mais claras: "esta é mate-com-leite, esta é café-com-leite. aquela ali", olhou pra fêmea no meu colo e concluiu "é só café".

olá, Café.

decerto você diria "Café é um nome bem picareta para um cachorro, Zé" e eu concordaria com você. "é", eu diria. "bem-vinda ao meu mundo, Café".

depois de inúmeras manhãs de domingo passeando nos parques e praças daqui, em menos de um ano estaria grande o suficiente para que eu te comprasse uma coleira mais confortável e toda noite que chegasse em casa, tarde da noite que fosse, te pegaria pra passear. os domingos se repetiriam nas áreas verdes: brincadeiras já memorizadas e minha voz familiar como a de um pai, não precisaria segurar sua coleira pra te fazer voltar pra perto; eu chamava e seu retorno era iminente e desembestado como a cadela boba e carinhosa que você se tornara com o passar dos anos.

e ao passar dos anos eu deixaria meu lar e você viria comigo, maiores as suas lágrimas em eu abandoná-la que as de minha irmã mais nova em perder a mascote da casa. um espaço maior e mais aberto, uma vizinhança nova, um cachorro igualmente bobo e vira-lata pra que você se enturmasse com os teus nas redondezas. a manutenção da rotina, os banhos sofridos de sábado e os passeios noturnos. seu brinquedo favorito, renovado uma ou duas vezes a cada mês por ser comestível e muito mais saudável que qualquer porcaria de plástico.

Café, você cresceu. se algum dia teve patinhas sujas eu logo percebia e te limpava, que as patas eram a parte caramelo do teu pelo quase preto e não era possível ignorá-las sujas; não raras as vezes que você as carimbava nas minhas roupas assim que eu chegava, e era meu dever relevar - quantas vezes não te dei abraços cheio de perfumes que não eram sequer parecidos com meus cheiros?

seu rabo longo e chicoteante, sempre abanando à menor vista do dono, sua orelha ligeiramente torta e rasgada por quando defendeu a casa d'um invasor qualquer (sobreviveu parcamente àquele dia, e foi o máximo que um cão faria por mim e quando choramos juntos aquela noite fui confidente e soube acreditar que era por mim que você o tinha feito).

não sei dizer, Café, como você ficou doente ainda anos depois e ainda depois de outras mudanças. chegaram os donos de sua mãe, nesse momento, e fiz em você uns últimos carinhos enquanto você lambia com calma os sonhos que me escorriam pelas mãos. olhei você nos olhos e você piscou de leve umas vezes. saudei-a em silêncio e me despedi não sei por quanto. "tchau, Café"; e entreguei teu corpo vivo, pesando poucos dias e uns sonhos de sobra, à mão de outro que te levou embora.



15 de Setembro de 2010



oi, spell.
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Re: Café

Mensagempor Lanzi em 24 Nov 2010, 17:08

Triste, bonito, nostálgico, e muito, muito bem escrito. É de uma leveza que faz com que a gente nem perceba o texto chegando ao final. Sério, muito gostoso de se ler.

E por quê triste e nostálgico? Fiquei até com vontade de chorar quando lembrei que também já vivi essas sensações sutis (e mágicas), e o quão triste fiquei quando tive de deixar minha cachorra pra mudar de cidade.

Muito bom o texto, singelo. Não vou dizer que é despretensioso, porque é muito bonito.

A única dúvida que tenho é porquê você não usou letras maiúsculas pra começar as frases.
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Re: Café

Mensagempor Blackbird em 25 Nov 2010, 18:49

Lanzi,

valeu! (:
bem legal que tenha te causado essas impressões.

sobre as minúsculas, é capricho. dois meses atrás (e ainda hoje) estive com essa coisa de não gostar muito de letra maiúscula no meio do texto, e mesmo agora não sei dizer bem o porquê. haha

incomoda, essa falta de maiúscula?
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Re: Café

Mensagempor Lanzi em 25 Nov 2010, 20:22

Nem incomoda. Na verdade, eu até gosto dessas quebras desde que elas sejam propositais e haja por trás dela alguma intenção do autor.
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Re: Café

Mensagempor Madrüga em 26 Nov 2010, 08:03

É melancólico mesmo. Não sei se é uma coisa de quem tem ou teve bicho, mas eu também fiquei meio embargado depois de ler. Corroboro a opinião do Lanzi: é simples, bonito, singelo e talvez essa característica de ter minúsculas demais tenha até deixado o texto mais leve.

Muito bonito, me trouxe todo tipo de lembrança também.
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Re: Café

Mensagempor joao-aragorn em 28 Nov 2010, 07:58

Os comentários do Lanzi e do madruga já definiram bem. Dá uma sensação gostosa e ao mesmo tempo, um certo incômodo ao lembrar de tempos mais simples. Adorei, Zé
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Re: Café

Mensagempor JungleJulia em 07 Jan 2011, 10:17

Tenho 8 cachorros maravilhosos, uma estava com uma doença terminal e o veterinário estava disposto a sacrificá-la - justificando que era raríssimo casos de recuperação desse tipo de doença. Lá em casa nós não tivemos coragem de sacrficá-la, então preferimos acreditar na força de vontade da própria cachorra em viver. Bem, deu certo. Ela ainda não consegue andar com as patas traseiras, mas já se arrasta com as patas dianteiras pela casa e, semana passada, começou a mexer novamente o rabo! Dá para imaginar a nossa felicidade, não é? Foi uma alegria imensa.

E é isso. Estão sempre conosco, não custa dar-lhes uma chance quando precisam de nós mas também é preciso saber ouvir quando eles querem/precisam nos dizer "adeus"... Como tudo nessa vida, hum?

Gostei do texto pelas lembranças especiais que tenho com cada um de meus cachorros.
Ah, e Café é um nome excelente! Eu adorei.
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