Acordou cedo e colocou a sua maquiagem diária. Era mais um dia de sol, e deveria ser aproveitado ao máximo. Dessa vez, pó de arroz deu a base para traços escuros de felicidade. Um mímico, artista de rua - muitas vezes considerado amador ou profissional de pouca importância. Sua vida estava em fazer os demais rirem e sorrirem em troca de alguns trocados.
Na praça ficava o seu estúdio. O banco da praça era o seu cenário enquanto a imaginação completava tudo o mais que ele precisava. Começou sentado no banco, pensando no que improvisar para o público. Foi o suficiente para atrair a atenção de alguns curiosos. Não demorou para levantar-se, ir para o canto de sua sala imaginária e começar escolhendo aquele vinil inexistente do Roberto Carlos. O motivo de tal escolha? Sua esposa acabara de colocar a torta de frango no forno, e apenas restava esperar - além de dançar. Ela? Usava um vestido xadrez que ia até as canelas. Ainda de avental, possuía um cabelo escuro - curto e ondulado. Pouca maquiagem, ela sorriu ao ouvir o som que vinha da vitrola.
O público buscava entender o que o ator de rua estava fazendo. Porque estava tão feliz? Porque olhava para o nada, admirado, e começava a dançar solitariamente no meio da praça? Alguns riam da felicidade imaginária dele, preso em seu mundinho para ganhar alguns trocados. Um senhor que tocava sanfona resolveu ajudá-lo com uma música para a sua dança. Não era uma do Rei.
Sorriu e beijou-a. Quando rumava para o sofá com sua amada, risadas silenciosas de algo inusitado - a vitrola travara. Foi para perto, todo malandro, e deu um chute de leve no canto da mesa imaginária. A vitrola voltou a funcionar, mas logo parou quando ele se virava em direção ao banco. Um sorriso amarelo veio com o inconveniente, que logo o fez desligar o som tirando-o da tomada. Porém, alguma música continuava a tocar. Olhou pela janela e viu o seu vizinho a ouvir música em um volume fora do normal. A nova geração e seus incômodos - resolveu tirar satisfação.
Todos ficaram curiosos ao vê-lo em direção do músico e sua sanfona. Uma porta imaginária foi batida. Impaciência estava estampada em seu rosto. Algumas pessoas riram ao vê-lo abrindo uma janela imaginária e entrando na casa que não existia. Sorrateiramente ele entrou, todo atento, em busca da origem do som. Ninguém foi impedí-lo. De pé, do lado do músico que estava distraído a tocar para a platéia, ele tentou desligar da tomada. Nenhum efeito surgiu. Com um passar de mãos no rosto, a máscara, outrora alegre, dá lugar a uma insana tristeza.
Olhando para aquele rádio que não parava de tocar, e sem sinal do vizinho, a raiva começou a tomar conta. Procurou por fios e pilhas, mas nada - só cócegas. Deu um chute na base que fez a música tremer, mas não a impediu de continuar. Olhou de um lado para o outro até que encontrou uma pequena pá ao lado da lareira - utilizada para limpá-la, normalmente. Pegou-a e resolveu dar um jeito na música que acabara com o seu humor.
Agora com um pedaço de pau ensanguentado em mãos, as pessoas não tinham reação alguma perante o silêncio que imperava. Jogou-o de lado, e com um chute na porta imaginária atravessou até a porta de sua casa. Antes de entrar, passou as mãos no rosto, surgindo um sorriso macabro de sangue e felicidade em seu rosto. Entrou e foi atraído pelo sorriso da amada, que estava a esperar no sofá.