A Noite da Sucúbos

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A Noite da Sucúbos

Mensagempor Benatti em 06 Mai 2010, 09:02

A NOITE DA SUCÚBOS

Era três da manhã e Lígia ainda não tinha dormido. Seus olhos castanhos, cansados, brilhavam no quarto escuro, iluminado apenas pelas luzes da cidade que entravam pela janela escancarada. Ora ela observava o teto do apartamento, ora seu marido, dormindo profundamente. Ele roncava alto e o som parecia vir de algum animal selvagem enfurecido. Seria um pouco assustador se ele não um sorrisse tão docemente. Lígia também sorria ao ver isso, então logo ele resmungava coisas incompreensíveis e a mulher voltava pra realidade.

Raul, era um homem alto, começando a ficar calvo, mas ainda sem nenhuma marca da idade no rosto. Ao observá-lo Lígia sentia uma mistura curiosa de irritação, inveja e pena. Principalmente pena.

Ele era um advogado de pouco sucesso e nos últimos dias trabalhava até tarde. Chegava em casa exausto e merecia dormir. Mesmo que não fizem sexo a um bom tempo. Mesmo que mal conversassem, e que a sinfonia grotesca que ele emitia enquanto dormia causasse uma insônia brutal em Lígia. Ele era um homem bom, trabalhador. Merecia dormir.

Ela precisava dormir.

Estremeceu ao lembrar de algo que viu na internet sobre a sociedade medieval. Naquela época se o marido falasse dormindo, diziam que Lilith (alguma rainha de demônios) estava transando com ele no mundo dos sonhos. Nesse caso a esposa devia assassinar seu marido.

"Ao menos elas conseguiam dormir" pensou Lígia com um humor negro incomum. Seu estômago revirou quando percebeu o absurdo que acabou de pensar. Lígia jamais faria algum mal a Raul, nem se ele a traísse... o que é uma idéia completamente ridícula. Eles eram um casal perfeito.

Não eram?

Se sentou na cama e levantou tomando cuidado para não fazer barulho. Pôs uma camisola confortável e saiu do quarto. Parou no banheiro pra lavar o rosto. Ela parecia jovem pra alguém com vinte e nove anos. Sem rugas. O cabelo castanho caia harmoniosamente pelos ombros. Se olhou melhor no espelho. A camisola vermelha tinha um ótimo corte e ainda lhe caia muito bem. Destacava-lhe os seios, insinuava a cintura fina e deixava as belas pernas totalmente a mostra. Lígia sorriu para o espelho. Ironicamente.

Antes que os pensamentos dolorosos sobre seu casamento viessem a tona ela foi para a cozinha, tomar água e talvez alguns calmantes. Calmantes sempre ajudavam.

Antes que pudesse chegar na cozinha ouviu um som alto de pancada e um gemido. Vinha do quarto.

Sentiu o sangue gelar e o grito que lhe escapou a assutou ainda mais. Correu pro quarto sem conseguir pensar em nada e ao entrar ficou ainda mais chocada. Raul não estava na cama, nem caído ao lado dela. Nem em lugar algum!

Desnorteada ela olhou em volta, procurando alguma explicação. Ele não teria como ir para a sala, ou para o banheiro sem passar por ela. Ou ele estava no quarto, ou...

Lígia olhou para a janela escancarada e seu rosto se converteu em uma máscara de dor e angústia. Eles moravam no sexto andar.

— Raul? — disse ela, se aproximando vagarozamente da janela. Lágrimas escorriam pelos olhos e ela tinha certeza o corpo do marido estaria no estacionamento do condomínio, contorcido e cheio de sangue. No entanto, quando Lígia olhou não viu nada além dos carros estacionados.

Aturdida e considerando a possibilidade de estar louca, Lígia começou a procurar pela casa. Gritava o nome dele cada vez mais alto. "Que se danem os vizinhos!" Ela nunca foi com a cara deles. Mesmo.

Olhou embaixo da cama, na banheira, na dispensa. Depois de alguns minutos procurando percebeu que realmente ele não estava em lugar algum. Tinha desaparecido!

Minutos infinitos se passaram enquanto Lígia pensava em alguma explicação para o que estava acontecendo. Ao menos ele não tinha se matado! Aliás, porque ele faria isso? Era uma idéia tão absurda... quanto a situação em Lígia se encontrava.

Calmantes. Ela precisava de alguns abençoados calmantes! Caminhou ansiosa até a cozinha e pegou a caixa de calmantes tarja preta. Ela tinha comprado a pouco tempo, mas ao retirar a cartela de comprimidos percebeu que estavam quase acabando. Será que o Raul estava tomando calmantes escondido? Ele não sabe que isso vicía?!

Antes que o turbilhão de pensamentos sobre o marido a dominasse Lígia engoliu dois comprimidos e sentiu a sensação de alívio tomar conta do corpo. Fechou os olhos e sentiu o topor... o vazio... e aquela dormência engraçada na base da nuca. Abriu os olhos, olhou em volta, guardou os calmantes e voltou pra sala.

Sentou no sofá e antes que pudesse pensar em algo a televisão ligou sozinha. Mesmo drogada se assustou tanto que não pode fazer nada além de observar a cena de algum filme de terror que ela assistiu com o Raul. No filme o John Kusack parecia tão assutado quanto ela. Alguns instantes depois Lígia percebeu que o controle da televisão estava no chão... provavelmente ela pisou no controle e por isso a televisão ligou. Simples.

Se abaixou com alguma dificuldade e pegou o controle. Antes que alguma cena daquele filme pudesse assustar ela ainda mais, Lígia desligou a TV. A tela apagou devagar e quando escureceu totalmente Lígia podia ver nela o reflexo da sala. Então ela viu algo que realmente assutador.

No reflexo da televisão havia uma menina de talvez seis ou sete anos estava sentada na poltrona ao lado de Lígia. Longos e belos cabelos negros entravam em profundo contraste com a pele extremamente branca. A menina vestia um vestido vermelho e era desconcertantemente bonita. Desesperada Lígia olhou para a poltrona ao seu lado e não viu nada... ninguém. Olhou denovo pra TV e o reflexo da criança ainda estava lá, olhando pra ela.

Talvez tenha passado minutos, ou nem um segundo, mas Lígia ficou completamente em choque quando percebeu que os olhos daquela criança eram extamente iguais aos olhos dela. O formato, a cor, o brilho. Droga, eram os olhos dela!

A criança abriu a boca pra falar, moveu os lábios mas não houve som algum. Mesmo assim Lígia entendeu o que ela disse... e nesse instante começou a chorar descontroladamente. Ela tinha certeza que a menina disse uma palavra que ela sempre quis ouvir, mas nunca ouviu. "Mãe".

Aquilo era mais que absurdo. Era impossível! Ela não tinha uma filha, nunca teve uma filha. Era estéril. Aliás, ficou estéril depois de um aborto mal feito a uns dez anos...

— Não! — gritou Lígia se levantando o mais rápido o possível da poltrona e da televisão. — Você não é ela! Não é!

E uma voz fria falou no fundo da cabeça dela "Mas se fosse, se ela tivesse nascido seria desse tamanho... e linda". Lígia não suportou e caiu. Sentiu o corpo batendo forte contra o chão, mas mal registrou a dor. Uma outra voz falava na cabeça dela, mas essa era uma voz doce e infantil.

— Mamãe? Não olhe o filme. Por favor. — esse "por favor" ecoava infinitamente na cabeça de Lígia e ela implorava pra tudo ser apenas um pesadelo. Implorava pra acordar de manhã, olhar o espaço vazio onde seu marido esteve antes de ir trabalhar, tomar café sozinha. Ver televisão. Sair? Não, ela não costumava sair. Talvez aprender uma nova receita de algo. Conversar com a Luana, sua melhor amiga. Aliás, a única que restou.

Em um estado de semiconsciência Lígia teve a impressão de ver o rosto de Luana. Era um rosto estranho, uma mistura de japonês com africano, mas ainda sim era um rosto agradável. Geralmente ela ajudava muito quando Lígia tinha seus surtos depressivos. Sempre com uma frase de um filósofo, ou algum livro de auto-ajuda. Agora Luana olhava pra Lígia com um desprezo e com um sarcasmo tão profundo que tudo que ela mais queria era sumir.

De repente tudo ficou escuro. Em seguida tudo ficou claro, e Lígia percebeu que estava acordando.

A cabeça doía muito, consequência dos calmantes. O alívio, a felicidade e a confusão de Lígia iam além de qualquer descrição. Era um sonho, um pesadelo. Não importa! Não aconteceu!

Lígia se virou e onde deveria haver um espaço vazio na cama estava seu marido. Seu rosto pálido, estava congelado em uma máscara de dor. Seu peito estava aberto a facadas. Lígia gritou por muito tempo até conseguir rolar pra fora da cama. Ao enconstar no guardaroupas percebeu que suas mãos estavam sujas de sangue. Havia sangue até metade do antebraço, na cama, nos lençóis. Em uma faca que estava fincada no chão de madeira do lado da cama.

— Eu... fiz isso? — perguntou ela pro cadáver de Raul — Eu fiz isso contigo?!

Só percebeu o quanto estava tremendo quando tentou ficar de pé. A cena era grotesca demais sequer de imaginar e Lígia se recusava acreditar no que estava acontecendo.

— Enlouqueci... — disse sozinha enquanto caminhava pela escura. — Enlouqueci e matei meu marido. Porque? Raul...

E mergulhou em lágrimas. Sentou na cozinha e ficou observando os azulejos, tentando pensar. Em vão.

— Calmantes! — disse frenética enquanto procurava a cartela de comprimidos. Quando encontrou tomou quatro e desejou que tudo sumisse. Que fosse apenas um pesadelo.

O fato é que dormindo ou não a vida era sempre um pesadelo. Esse só era o pior de todos.

Completamente dopada, Lígia caminhou até a sala, esbarrando em alguns móveis e se apoiando na parede. Pegou as chaves de casa, as do carro e caminhou na direção da porta. Riu sozinha quando percebeu a dificuldade que tinha pra colocar as chaves na fechadura. Quando finalmente conseguiu, descobriu que a porta não abria. Tinha emperrado. Maravilha!

Forçou um pouco, mas desistiu. Quando virou de costas pra porta escutou o barulho incrivelmente alto do trico destrancando. Isso fez uma onda de calafrios e tremedeiras tomar conta do corpo dela novamente. Ainda de costas ouviu o som da porta abrindo, e passos. Alguns malditos passos se aproximando e Lígia não conseguia mover um único músculo pra ver quem era!

No reflexo do espelho da sala Lígia conseguia ver uma mulher nua atravessando a porta de entrada. O rosto estava deformado, como se tivesse derretido. A cabeça tremia freneticamente, parava de tremer alguns intantes e olhava pro reflexo aterrorizado de Lígia. Depois continuava tremendo. Cada passo que ela dava se aproximava mais de Lígia e o pânico aumentava a cada segundo.

Lígia reuniu toda a força que tinha e correu. Não foi grande coisa e ela esbarrou em uma cadeira, caindo no chão. Quando levantou descobriu que tinha torcido violentamente o tornozelo, mas continuou correndo na direção do quarto sem olhar pra trás.

Ao chegar lá tomou um novo susto. O corpo de Raul não estava mais lá! O sangue e a bagunça ainda estavam por todo o quarto. A faca ainda estava fincada no chão ao lado da cama, mas o Raul tinha sumido outra vez.

No lugar onde ele estava havia agora um pequeno CD. Lígia se aproximou, olhou pra trás pra ver se a mulher ainda estava por perto. Não ouviu nada, não viu nada. Isso não era um bom sinal, mas era o máximo que podia esperar.

No instante que Lígia pegou o CD ouviu a voz infantil ecoar na cabeça. "Por favor, não assista". Era a voz insistente da filha, mas porque ela não podia assitir esse filme? O que seria mais assutador que tudo que tinha acontecido? O que podia ser pior? A morte? Talvez não.

Lígia caminhou com muita dificuldade até a sala. Cada passo era um sacrifício, não só pelo efeito dos calmantes, mas pela dor aguda no tornozelo que subia até a coxa.

Contrariando os avisos do fantasma de sua filha Lígia colocou o CD no aparelho de DVD, ligou a televisão e se sentou. Enquanto o CD carregava ela lembrou do filme que tinha visto com o Raul... como era o nome? Era com o Samuel L. Jackson... e parecia muito com tudo que estava acontecendo, mas qual era mesmo o nome?

Nesse instante o filme carregou.

A tela ficou toda preta, exceto pelas palavras "Cena_1.avi", "Cena_2.avi" e "Audio.mp3" escritas em branco. Lígia pegou o controle remoto e selecionou a cena 1.

Na tela surgiu o rosto japonês-africano da Luana, olhando fixamente pra camêra com uma tristeza tão profunda que chegava a desesperar. Em volta dela havia uma mistura estonteante de flores e folhas. Tudo muito colorido e muito verde. Sem dúvidas essa gravação foi feita no parque Boulemarx, onde costumava ir com Lígia quando precisavam conversar. Chovia forte, ela estava em uma praça de alimentação e esse quadro todo era pertubadoramente familiar pra Lígia. Quantas vezes não almoçaram ali, falando sobre a vida e dando risada?

Na gravação estava claro que a Luana pretendia dizer algo. Ela ficou um bom tempo observando as próprias mãos até que olhou novamente pra câmera, inspirou fundo e falou.

— Lígia... — começou ela com a voz trêmula. Sofrida, como se o ato de falar causasse dor física. — Não é fácil pra mim, dizer isso pra você...

— Você tá me assustando. Sabe que eu não gosto de suspense. — a voz que disse isso veio de trás da câmera e para o espanto de Lígia era sua própria voz. Nesse momento ela também percebeu que o foco variava constantemente e a câmera oscilava de um lado para o outro de uma forma natural. Quase imperceptível.

Não era uma câmera e aquilo não era uma gravação! A verdade era simples. Era uma memória de Lígia. Algo que aconteceu e por alguma razão foi esquecida.

— Lu... fala. — enconrajou Lígia na gravação.

— É o seguinte. — disse Luana eu sei que não vai acreditar em mim, então só peço que me ouça até o fim. Tudo bem?

— Tudo.

— Então... — depois de respirar fundo Luana continuou — seu marido, o Raul... ele tá te traindo.

Silêncio. Ninguém disse nada, então Luana continuou.

— Descobri por acaso. Eu tava passando de carro e vi ele em um barzinho do centro, conversando com uma loira. Parei do outro lado da rua e fiquei olhando pra ver se era neura minha, ou se tava rolando algo. De lá eles foram pra um motel barato. Lígia?

— Eu tô bem — respondeu a voz de Lígia — continua...

A tela começou a embaçar um pouco como se tivesse sendo lavada por dentro. Na gravação Lígia chorava e muito. Fora dela também.

Luana continuou.

— Então, eu não esperei pra saber quando eles iam sair. Fui pra casa e no dia seguinte perguntei pra você se o Raul tava trabalhando muito... lembra disso?

— Não muito bem... faz tempo isso?

— Menos de um mês. Depois disso eu comecei a seugir ele. Vi que ele sempre saia com a mesma loira e ia pro mesmo motel barato. Soltei um dinheiro lá e descobri o apartamento. Coloquei... uma câmera no quarto. Só assim você ia ver o traste com quem você casou e ia conseguir acreditar em mim. Desculpa Lígia...

Nesse ponto tanto a Lígia da televisão quanto a fora dela gemeram dolorasamente entre os soluços e as lágrimas. Não pela revelação, mas por saber que em pouco tempo iria ver o que não deveria ver.

Nesse momento o vídeo parou e voltou pra tela preta de seleção de cenas. Lígia ainda chorava muito e olhava pro controle com medo. Não queria ver a próxima cena! Mas sabia que agora não mais tinha escolha. Apertou o botão "enter" no controle remoto e se forçou a ver a cena mais dolorosa de sua vida.

Na tela surgiu uma cama redonda, com um lençol vermelho um pouco gasto. A cabeceira da cama era de madeira, com um painel cheio de botões. Um pouco mais acima havia um espelho que refletia a mesinha onde haviam algumas flores de plástico, alguns quadros de paisagens rurais e outras decorações baratas. Lá estava a câmera escondida, filmando em silêncio o palco onde em breve Raul entraria com sua amante.

A antecipação era a pior parte. Lígia não chorava mais, só ficava quieta, observando cada detalhe do filme. Percebeu que o espelho que refletia a parede onde estava a câmera também refletia o vidro onde estavam os quadros mal posicionados. Em um deles era possível ver a porta se abrindo e Raul entrando por ela. Acompanhado.

Lígia esqueceu completamente a dor no tornozelo, esqueceu todas as coisas grotescas que tinham acontecido essa noite. Esqueceu tudo, exceto o vazio. A sensação que ela tinha quando via seu marido chegar em casa exausto do "trabalho". Aquilo que ela sentia quando acordava sozinha e tomava seu café forte tentando se livrar do efeito dos calmantes. Na TV Lígia viu um Raul apaixonado, beijando aquela loira desconhecida da mesma forma que ele a beijava no começo do casamento. Era algo nos olhos dele. Um brilho que tinha se perdido com o tempo...

Logo ambos estavam nus e se amando devagar, com uma espécie de diligência apaixonada. Lígia reconheceu que devia estar fora de si, louca, chorando, com raiva, ou algo assim. O fato é que ela estava fria e calma. Vazia.

Isso era culpa dela. Ela sabia disso.

Lígia lembrava claramente que conforme os anos foram passando, nenhuma grande mudança financeira aconteceu. Lígia saiu do emprego que tinha em uma loja de conveniências para se dedicar unicamente a vida doméstica. Raul não protestou, mas sugeriu que ela retomasse os estudos, afinal Lígia ainda não tinha concluído nem o Ensino Médio. Isso era vergonhoso aos vinte e dois anos.

Com certa dificuldade ela terminou os estudos básicos. Não que ela fosse tapada, mas era muito... preguiçosa. O fato é que Lígia gostava de viver em casa, sem grandes problemas, nem grandes ambições.

Foi o que ela fez pelos anos seguintes. A rotina de Lígia era sempre a mesma e a cada ano ficava mais solitária. Menos amigos, menos problemas e menos Raul. Lígia percebeu que seu casamento estava ruindo e antes que caísse no desespero vieram seus salvadores. Os calmantes.

Lígia estava tão imersa em seus pensamentos que se assustou muito quando viu um vulto surgir na tela. Julgou ser um outro fantasma, ou alguma insanidade do tipo. Pegou o controle e voltou um pouco filme até o ponto onde viu o vulto.

Lá estava ele de novo. Não era um espírito, um demônio ou algo assim. O que ela viu era muito mais assustador. Era o inconfundível rosto japonês-africano de Luana saindo do quarto. Só era possível vê-la em uma fração de segundos e se não fosse pela posição do quadro em relação ao espelho seria impossível ver a Luana na gravação. Mas era ela. Sem dúvida alguma, era ela na maldita gravação!

Por alguns instantes o tempo parou pra Lígia, e nenhum pensamento tinha coerência. Uma fúria primitiva começou a tomar conta dela, sem ela nem ao menos entender porquê. Quando percebeu suas mãos estavam tremendo muito e ela largou o controle no sofá antes que quebrasse ele de alguma forma.

Quando voltou a si percebeu que o DVD tinha voltado pra tela de seleções e só faltava um último item. Uma última peça pra entender o que estava acontecendo.

Antes de terminar com isso Lígia tentou analisar os fatos.

Raul tinha traído ela, com uma loira, mas também com Luana. Já essa víbora gravou tudo sem eles saberem e pretendia usar essa gravação como um meio de separar a Lígia do Raul. Como podia ser tão falsa? E porquê ela faria isso?

Por dentro Lígia queimava em ódio. Não só de Raul, nem só de Luana, mas dela também. Como pode ser tão burra?

Raul no quarto, com o peito aberto a facadas era agora uma coisa prazeirosa de se lembrar. Talvez ela tenha mesmo matado Raul antes de enlouquecer de vez. Tomara que tenha matado ele, e Luana também!

Então Lígia decidiu que estava pronta pra terminar com tudo isso. Com o controle selecionou a opção "Audio.mp3" e esperou pacientemente enquanto o DVD carregava o arquivo.

Durante alguns segundos era apenas silêncio. No instante seguinte haviam alguns sons de passos, respirações e as vezes o som que uma cortina faz ao ser aberta.

Lígia se concentrava em cada ruído, mas ainda era impossível entender algo. Ouviu o som de talvez uma cadeira, ou uma mesa arrastando no chão. Uma respiração profunda e então uma voz. Raul.

— Lígia? Você me ouve? — disse a voz rouca e chorosa do marido — Eles disseram que sim. Sabe, eu... eu não aguento, ver você assim. Eu... me desculpa. Porque foi tomar tantos calmantes?

Então Raul começou a chorar ruidosamente. Ele tentava falar, mas não conseguia dizer nada compreensível além de "me desculpa". Chorava muito e ao ouvir isso Lígia se sentia triste, desesperada. O que ela mais queria nesse momento era poder amparar Raul e dizer que estava tudo bem, que ela o desculpava. Ao mesmo tempo ela se sentia enjoada consigo, por amar tanto um homem que a traiu tão cruelmente.

Subtamente Raul conteve o choro e se recompôs.

— Entre — disse ele. Então uma porta fechou e houve som de passos. Era inconfundível o som de sapatos de salto alto.

— Raul... — disse a voz de Luana. Era a voz triste que amaparou Lígia em horas escuras dezenas de vezes. Dessa vez essa voz criou a mais escura das horas, na pior das noites possíveis. — Raul... tá tudo bem?

— Tá, tá sim. — respondeu Raul, com uma voz forçada — Eu só precisava ver ela mais uma vez...

— Tem certeza que é isso que você quer?

— Luana...

— Me escuta Raul. — disse a voz de Luana com firmeza — Os médicos disseram que talvez ela...

— Pro inferno os médicos Luana. — a voz de Raul agora estava sinceramente firme, e um pouco sombria — Ela teve esse derrame a meses, eles disseram que mesmo se ela acordar, ela vai ficar em estado vegetativo!

Nesse momento houve uma pausa. Raul (provavelmente Raul) respirou fundo. Som de alguém arrastando uma cadeira.

— Lu... eu te invejo. — disse Raul enigmático. — Você foi a ultima pessoa a conversar com ela.

— Eu já te contei sobre o que conversamos... ela tava reclamando da vida, falando que tava triste... sabe, tentei ajudar. Quando cheguei na casa ela tava caída no chão, tomou os calmantes e meio litro de uísque. Ah Raul... — nesse instante Luana começou a chorar. Lígia, ardendo em ódio, se perguntava se aquelas lágrimas eram fingidas, ou se eram sinceras. Lágrimas de culpa.

Com certeza era fingimento. Puro.

— Vamos embora Lu. — falou Raul com aquela voz reconfortante que Lígia conhecia tão bem. — Vamos pra casa.

— Tem certeza que é isso que vai fazer?

— Tenho. Já conversei com o médico. Eutanásia... essa merda é proibída, mas é a melhor coisa pra Lígia.

Então Lígia ouviu o som de passos, uma porta abrindo e mais uma vez a voz de Raul. — Tchau Lí... — e então o som da porta fechando.

Nesse instante a televisão desligou. Enfim Lígia respirou fundo, mas continuou observando a TV.

— Eu... morri? — falou sozinha — ou tudo isso é uma alucinação? Será que eu ainda tô no hospital? Será que...

— Mãe... — disse a voz doce da filha. — Mãe, não chora.

Lígia olhou pra poltrona ao lado e lá estava sua filha. Ou como ela seria se tivesse nascido... simplesmente linda!

— Você sabe? — Lígia perguntou deseperada — Sabe o quê aconteceu comigo?

A menina balançou a cabeça negativamente.

— Mas... sabe como descobrir?

Dessa ela fez que "sim" com a cabeça. Saiu da poltrona e caminhou até Lígia. Tão frágil, tão pequena e tão... linda! A criança pegou a mão de Lígia e puxou levemente. — Vem mamãe.

Lígia esperou uma vida inteira pra ouvir isso. Talvez mais que uma vida, mas agora isso não importava. Ela levantou e se deixou ser guiada pela criança. Talvez ela estivesse louca, ou em coma, presa nesse mundo criado pelo subcosciente, talvez estivesse... morta. Ao pensar nisso tremeu e criança olhou pra ela.

— Mamãe, depois que a gente passar dali. — disse ela apontando pra porta de entrada do apartamento — a gente não vai poder voltar. Eu tô com... medo. De não te ver mais...

— Calma querida. — disse Lígia, abaixando até ficar da altura da menina — Estamos juntas.

Então a menina a abraçou forte. Lígia sorriu e abraçou.

— Vai ficar tudo bem minha filha.

— Mamãe, Sempre estivemos juntas.

Sem dizer nada Lígia se levantou, pegou a mão de sua filha e saiu do apartamento.
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A Noite da Sucúbos

Mensagempor Lady Draconnasti em 08 Mai 2010, 00:54

Meeeeeeeeeedoooooooooo.

O texto ficou longo, meio maçante em algumas partes (creio que por causa da confusão inicial que tive para entender a lombra da mulher). Quando a cena do vídeo começou, eu cheguei a pensar "ótimo, agora vem um momento 'A Bruxa de Blair 2'", mas se saiu melhor que o esperado.

Acho que no momento é só. ^^
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Mensagempor Emil em 08 Mai 2010, 01:39

Cuidado com a revisão, sempre.
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Lutai primeiro pela alimentação e pelo vestuário,
e em seguida o reino de Deus virá por si mesmo.

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