Crônicas da Lusitânia

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Crônicas da Lusitânia

Mensagempor Glorfindel em 15 Dez 2009, 04:17

Bem, essa é a minha primeira participação de produtividade aqui no fórum. Estou no computador do trabalho, procurando alguma coisa pra fazer enquanto minha rotina noturna não se encerra. Acho que escrever é o melhor remédio nesse momento. :cool:
O texto abaixo é um conto medieval sem muitas pretensões, estou escrevendo-o a medida que as idéias vão chegando a mente. Espero que seja digno de comentários, o pessoal que escreve aqui costuma mandar muito bem. ^_^

Editado: Um errinho de concordância e alteração do título do tópico



O Corvo...

Um cavaleiro de meia idade cavalga solitário sob a cinza luz do sol no início da manhã. O clima frio e pálido é pouco acolhedor e o cansaço da longa viagem começa a abatê-lo. Ele ainda vigora sobre sua montaria, um puro sangue lusitano de pelagem clara que escurece a medida que se aproxima das patas, mas sabe que terá que parar em algum momento. Este cavaleiro, chamado Viriato, recebera este nome em honra ao grande herói lusitano que enfrentara os romanos em anos passados. Mesmo tendo um forte nome, suas ambições eram outras. Ele fora convocado para o exército romano ainda jovem e lá moldou sua personalidade diferente do que havia sonhado seus pais.

Diante dele a trilha deixada pela cavalaria romana, que partiu da cidade de Balsa em direção às regiões centrais da província Lusitânia, em meio ao descampado verdejante, davam a direção a que devia seguir. Ele havia ficado para trás de seu destacamento enquanto se satisfazia com a pele lisa e macia de uma jovem lusitana em uma aldeia onde pararam para reabastecer com água e mantimentos horas antes. Agora ele corre para se unir aos homens novamente, antes que alcançassem seu destino.

Em meio à cavalgada seus pensamentos vagavam no ódio induzido que ele sentia daquela terra. Seus maiores sonhos eram viver em Roma e ter uma bela mulher, que lhe gerasse filhos campeões, para honrar o imperador.

Interrompendo seu transe momentâneo, um forte cheiro de fumaça foi sentido tanto por ele quanto por seu cavalo, que começava a ofegar. Mais adiante um pouco ele vê, ao longe, a fumaça de uma aldeia ainda em chamas e logo soube que se tratava de um ataque realizado por sua cavalaria. -- "Malditos sejam, perdi este ataque!" - pensava ele com cólera no peito.

A trilha que seguia até a aldeia possuía corpos mutilados e queimados largados ao chão, onde alguns, ainda vivos, gemiam e gritavam de dor. Nada ele podia fazer a não ser seguir seu caminho.

Vindo de encontro a ele, uma mulher caminhava lentamente. Ela estava ferida e com suas roupas rasgadas. Seus longos cabelos escuros e maltratados cobriam parte de seu busto e amarras de corda seguravam o restante da vestimenta que escondia suas vergonhas. Ela tinha em seus braços um infante, uma criança que ainda não atingira seu primeiro ano de idade. Enquanto ele se aproximava ela erguia um de seus braços em um gesto único de misericórdia, pois palavras ela já não conseguia mais pronunciar. O cavaleiro se aproximou da mulher e desceu do cavalo, parando diante dela. Com os olhos ele fitou a aldeia, ao fundo, ainda em chamas e num movimento panorâmico de sua cabeça observou aquela região miserável, mas nenhuma outra pessoa ali havia, apenas um corvo pousado no toco de uma árvore cortada, que observava a cena atentamente.

Com uma leve expressão de desprezo ele se volta para a mulher e apenas comenta: -- "Não posso deixar que uma prostituta suja e seu filho mendigo poluam as ruas das províncias de Roma." - Dito isto, com sua vasta habilidade com a espada, ele a desembainha e desfere uma única estocada que atravessa o corpo da criança e da mulher. Os dois corpos tombam em seco diante dele, enquanto um jorro de sangue lhe suja a face e a roupa. Neste instante o corvo grasna e alça vôo, tomando seu rumo.

O cavaleiro guarda a espada e dá um leve chute no corpo inerte constatando a morte da mulher, pois da criança ele não tinha dúvidas. Ele sabia que miserável também fora sua atitude, mas de testemunha havia apenas um corvo que fugira.

Tomando as rédeas do cavalo, o cavaleiro o monta novamente e segue seu caminho, regozijando-se por ter limpado a imundice que corrompe as terras de Roma.
Editado pela última vez por Glorfindel em 21 Dez 2009, 06:04, em um total de 1 vez.
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Mensagempor Lady Draconnasti em 19 Dez 2009, 10:12

Fidapoota!

Ok, vamos lá.

Gostei, possui uma narrativa gostosa de se ler, está bem formatado (e eu acabei de acordar, então, perdoe a forma seca de comentar).
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Mensagempor Glorfindel em 21 Dez 2009, 09:39

Não se preocupe, um comentário positivo era o que eu almejava pra esse conto. Deu até vontade de escrever uma continuação.


... e Viriato.

Após meses cavalgando pelas terras do norte da Lusitânia, combatendo os contrários ao império romano, finalmente foi dada a ordem dos cavaleiros de Balsa irem para a cidade de Emérita Augusta, futura capital da Lusitânia. Seus esforços para manter a paz romana na região foram reconhecidos e o Cônsul Marco Vipsanio, que acabara de inaugurar o Anfiteatro de Mérida, achou aquele o evento perfeito para inaugurar sua obra.

Viriato, que se satisfazia com o recém conquistado título de decurião, deitava ao relento naquela noite estrelada. Ele tentava localizar no céu a estrela de Cariocecus* para pedir mais uma vitória antes da chegada à cidade, pois agora ordenava uma decúria, sendo outros dois cavaleiros e sete soldados.

Ele não encontro a estrela, mas um pequeno vulto sombrio cruzou o céu no instante em que ele estava por se levantar. Sua espinha gelou quando ele reconheceu o semblante de uma ave de rapina. -- "Maldita ave, por que me persegues?" - Ele sabia que esta pergunta não seria respondida, mas nem mesmo tinha certeza se aquele corvo que cruzava o céu era o mesmo que havia presenciado seu ato de misericórdia meses atrás. Ele se levantou e se dirigiu à sua barraca, pois na manhã seguinte seu destacamento se uniria a centúria na estrada de Toletum.

Viriato cavalgava solitário por entre a névoa da floresta. Seu gládio pingava sangue ainda fresco e seu cavalo mancava da pata traseira devido um ferimento por flecha. Ele tentava se unir a seus companheiros, visto que aquelas terras bárbaras eram traiçoeiras. Ele seguia o rastro deixado pela divisão do grupo e em pouco tempo conseguiu localizar a pessoa com quem mais se preocupava o decurião Emiliano, seu amigo e superior. Ele estava sozinho e ferido na perna, mas ainda vivo e são, precisando apenas de tratamento.

-- "Emiliano, meu amigo e irmão, podes se mover?" - disse Viriato preocupado.
-- "Viriato, fico feliz em vê-lo, mas creio que seu cavalo coxo não poderá levar nós dois. Temo que seja a morte de ambos se tentar me ajudar. Vá e busque ajuda enquanto me escondo nessas árvores." - respondeu o decurião.
-- "Farei seu pedido, mas não quero vê-lo morto por estes bárbaros. Sabes que não viverá até meu retorno e serás mutilado ainda vivo. Conceder-lhe-ei a honra que apenas um soldado romano pode fazê-lo." - disse isso empunhando sua espada, para desespero nos olhos de Emiliano - Retornarei para pegar seu corpo e o elogiarei com honras ao centurião Éfaso.

Viriato desfere uma estocada que trespassa a garganta de Emiliano, em direção ao peito. Ele era seu amigo e não poderia deixá-lo morrer nas brutais mãos inimigas. Porém um fato estranho ocorreu pois, em seguida, vários corvos começaram a pousar nos galhos ao redor de ambos. Em desespero Viriato sobe em seu cavalo e foge, nunca mais retornando para buscar o corpo de seu amigo.

Suado e ofegante, Viriato acorda cedo. Mais uma vez ele sonhara com o fatídico dia em que teve que dispor da vida de seu melhor amigo em honra a Roma. De seu legado ele herdou seu título de decurião, feito este que veio para bem, pois se considerava um líder melhor que Emiliano.

O cavaleiro arruma seus pertences e acorda seus homens. Mais um dia de viagem os aguarda até que encontrem a centúria na estrada de Toletum. O sol da manhã ilumina o perfil do rosto dos soldados enquanto caminham pela pradaria. Nenhum lampejo de heroísmo é visto entre aqueles, por mais que o decurião acreditasse ser um dos representantes do céu enviados a terra para triunfo de Roma.

Do alto de uma árvore não muito longe um bando de pássaros negros repousa sobre seus galhos mais obscuros. Apenas uma olha insistentemente para aquele grupo de homens que segue ao longe.

* Deus da guerra lusitano (Marte para os romanos e Ares para os gregos).
Editado pela última vez por Glorfindel em 23 Dez 2009, 07:03, em um total de 1 vez.
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Mensagempor Lady Draconnasti em 21 Dez 2009, 13:28

Hehehehe

Um FdP... Estava sentindo falta deles. =)
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Mensagempor Glorfindel em 23 Dez 2009, 07:01

Ele é um pouco mais que isso.
Não sei muito bem como o povo daqui reaje a alguns temas, mas essa continuação abaixo pode ter um impacto maior devido alguns subterfúgios utilizados por nosso protagonista.



Destino

Viriato se reclina sobre a sacada gradeada de sua casa em Roma. Ele olha para baixo e vê a imundice que aquela região havia se tornado. A rua estava impregnada por várias pessoas de várias etnias e o sangue puro romano estava se diluindo em meio àquela miséria.

Desde antes de se casar sua mulher já não falava com ele, mas também pouco importava, ele já estava velho e aposentado do exército. Teve duas filhas e nenhum homem para honrar o imperador. Fora banido do senado, acusado de tentar matar o senador Vitório, o que era um fato, porém nunca comprovado. Restava-lhe se relembrar de seus feitos do passado, porém estranhamente só conseguia pensar em sua mulher e em como a conquistou.

O decurião Viriato chegava a Roma pela primeira vez. Ele se encantara com a cidade e em poucos meses havia conseguido bons contatos entre os mais influentes membros do distrito dos lusitanos. O maior deles, um senador de menor influência chamado Picunus, que em pouco tempo depositou grande confiança no soldado, era quem lhe daria a alavanca que o levaria ao senado, seu novo anseio, visto que o exército pouco lhe atraía mais.

Picunus tinha uma filha, uma jovem e linda donzela de longos cabelos de fogo, pele clara e pequenas sardas na face, que ainda não havia completado seus dezenove invernos. Seu olhos, de um azul acinzentado, desnorteava a mente quando fixava o olhar em alguém e a brisa das macieiras a acompanhava aonde quer que fosse. Nênia era seu nome, pois nascera da morte de sua mãe, mas sua vida era cheia e alegre. Viriato a havia visto várias vezes e sua mente se encheu de desejos em cada uma delas. Freqüentemente ele era enviado para alguma missão pelo exército, e mal conseguia esperar para retornar e visitar Picunus, para ter a possibilidade de vê-la novamente. Lamentava-se apenas que a jovem era prometida e seu casamento estava próximo. Assim um estratagema veio a sua mente, que ele pôs imediatamente a funcionar.

Com alguns dobrões ele conseguiu convencer a ama-seca de Nênia a levá-la à rua dos aflitos, em uma casa que ele havia comprado com seu pequeno soldo. A jovem, inadvertida, estava encantada com aquele novo passeio, e justificava-se a mulher que iriam visitar um parente solitário. Nênia amava aquela mulher como a uma mãe e em nada havia motivo para desconfiar do que estava por vir.

O brisa sopra na rua dos aflitos. O cheiro do esgoto polui o ar e pesa a respiração dos que não são acostumados com o local. Várias vezes Nênia sentia uma leve repulsa arrepiar-lhe a pele. Crianças brincavam, naquela terra suja, enquanto homens e mulheres labutavam pela rua. Uma cena miserável aos olhos dos mais esnobes.

Nênia e sua ama chegam a uma pequena casa de um cômodo, separada da rua por uma porta e uma janela. A mulher bate vigorosamente à porta e, para surpresa de Nênia, Viriato a abre.

-- “Senhor Viriato, que surpresa, não sabia que eras parente de Gandja.” - Comenta a jovem perplexa.
-- “Venha, entre para conversarmos.” - Respondia o homem, muito polido e educado, enquanto a tomava pela mão, com um olhar e sorriso tão puro que dificilmente era possível compreender o que realmente se passava em sua mente suja.
-- “Gandja não vem?” - Virava-se Nênia quando percebeu que sua ama lhe dera as costas. -- “Não, ela não virá.” - Retrucava o homem, trazendo-a para si e batendo a porta.

Viriato a levou até sua cama e a fez se sentar. Nênia assustava-se, mas ainda não entendia ao certo o que ocorria. Por bastante tempo Viriato tentou persuadi-la a se casar com ele, mas a jovem negava a oferta, dizendo que seu noivo esperava apenas que ela completasse seus vinte anos. Todos os argumentos discursados pelo soldado foram descartados, pois a jovem era irredutível nesse sentido.

Viriato se levanta e permanece de costas para a moça. Sua mente ardia e seu sangue fervia em ira e desejo. -- Eu acreditava que pudesse convencê-la, mas creio que terei que fazer de outro jeito. – O homem se vira bruscamente, acertando uma bofetada na jovem, com sua mão envolta em uma toalha.

Atirada na cama e bastante tonta a jovem pouca reação demonstrou. Viriato, com cuidado, retira-lhe a roupa e executa um ato tão vil e repugnante que a mera pronúncia de sua palavra causa ardor naqueles mais suscetíveis. Nênia sentiu como se uma lâmia quente atravessasse sua carne e um calor venenoso lhe corroesse o sangue. Não demorou muito para que o soldado concluísse o feito.

-- “Se vista, pois sua ama já vem lhe buscar.” - ordenou o soldado. A jovem atendeu prontamente, ainda com o horror em seu rosto. -- “Uma vez por semana ela lhe trará a esta casa e passaremos este momento juntos até eu ter certeza de que tu estarás prenha de uma criança minha. Não pense em contar a ninguém o que aqui ocorrera, pois sua vergonha será tão grande que banida de tua família serás.

A jovem termina de se vestir e procura não entrar em desespero, embora sua alma gritasse e chorasse com tanta intensidade que sua garganta doía em aflição. Gandja chega e Viriato entrega a moça para que a levasse em segurança à sua casa.

Semana após semana Nênia se via naquele pesado, até que um dia, cerca de três meses depois, ela teve a certeza de que o intento de Viriato se concretizou. O impacto de sua gravidez em sua família foi enorme e a moça foi culpada por sua desobediência aos desejos de seu pai de que ela fosse menos festiva.

Seu casamento fora desfeito, o que custou muito a seu pai. Até que, um dia, uma chama de esperança se fez no peito do velho Picunus. Viriato havia chegado para uma visita à casa do senador, e ouviu atentamente à história do velho homem. Por fim, condolente com a situação que o homem enfrentava, ele anunciou.

-- “Casar-me-ei com sua filha. Sou um homem maduro, cujas pretensões do matrimônio ainda não eram planejadas, mas vejo que para ajudá-lo devo fazê-lo. Tomarei a criança de sua filha como se fosse minha e não precisarás se preocupar, pois sua família não sofrerá esta vergonha.”

Picunus arregala os olhos. Jamais teve tamanha admiração por alguém como estava tendo pelo decurião neste momento. Sua oferta era tão generosa e compassiva que ele se vira incapaz de recusá-la. – “A mão de minha filha será tua então e assim selaremos esta vergonha de minha família, e eu terei um sucessor no senado.”

O pedido veio melhor que a encomenda, pois Viriato ainda acreditava que teria que convencê-lo a lhe ceder uma cadeira no senado. O anúncio que o homem fizera o havia poupado de usar sua persuasão.

O casamento foi feito muito às pressas e Nênia, que era cheia de vida, passou a ser uma sombra em sua casa. O tempo passou e o senador Picunus falecera de uma grave doença. Com aceitação dos demais senadores, Viriato passou a ocupar sua cadeira, representando a vontade do povo lusitano em Roma. Finalmente ele havia conquistado aquilo por que sempre lutou. Um exemplo de perseverança para seu povo, acreditava ele.
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Mensagempor Lady Draconnasti em 23 Dez 2009, 10:14

FdP.

Ok, agora quero saber como termina.
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Re: Crônicas da Lusitânia

Mensagempor Glorfindel em 10 Mar 2011, 11:59

Mais de um ano depois, concluí o conto. A idéia sempre foi essa mesma abaixo, mas não sei se consegui manter a mesma narrativa dos contos anteriores. Achei que ficou mais leve e mais dinâmica, mas não tenho certeza se ficou favorável para o texto. Bem, se alguém tiver o interesse de comentar, agradeço. ^_^


O Retorno a Lusitânia

Uma turba caminha pelas ruas de Roma seguindo uma pira póstuma carregada por quatro homens. Choros lamentosos e lampejos de desespero dominam o ambiente, enquanto um séquito de preto cerca a urna funerária dentro de um domo gradeado que era levado em uma pequena carruagem puxada por cabras.

O sol começava a nascer e sua luz guiava aquela multidão em direção ao jazigo de Soeiro*. Das edificações vizinhas, curiosos corriam para as janelas e observavam aquela procissão e do alto dos telhados, corvos grasnavam esporadicamente.

Viriato e sua filha estavam ali, logo à frente da carruagem que levava as cinzas de Nênia. Embora todas as lamúrias fossem constantes, o lusitano apenas ouvia aquele corvejar o amaldiçoando. Aquilo o assombrava desde o início de sua vida como soldado de Roma e até hoje ele não havia entendido seu significado.

-- “Malditas aves” – murmurou o soldado. -- “Até na morte de minha amada mulher elas não me deixam.” – reclamou novamente sozinho, embora ouvido por sua única filha, Caliana.

Ela olhou para o alto dos prédios tentando avistar aquilo que seu pai via, mas nada havia lá além de curiosos imundos. Caliana havia herdado o espírito forte de seu pai, mas tinha por sua mãe um tamanho respeito poucas vezes visto de uma filha para com sua genitora. Enquanto Viriato lhe contava histórias de guerras e conquistas, sua mãe lhe dava discernimento e ponderação.

Já na velhice de seus mais de cinqüenta anos, Viriato era ainda mais intensamente guiado por seus preconceitos funestos. Nênia nunca teve voz para conseguir evitar as insanidades cometidas pelo senado quando Viriato o influenciava, mas Caliana tinha e pouco depois de seus quinze anos passou a se interessar pela política de que tanto seu pai lhe falava.

Embora influenciada por seu pai desde a infância e herdeira de sua astúcia e inteligência, ela havia adotado uma postura neutra em defesa de Roma, o que lhe permitia pensar além das intimidações e assassinatos que levaram seu pai ao poder. Em um certo momento, Caliana passou a utilizar de sua lábia para o bem de seu próprio pai e ele a tinha como uma confidente política, sempre recorrendo a seus conselhos quando não via saídas para suas decisões mais contraditórias, visto que temia, com razão, a ira de Cesar Tibério Augusto, o recém assumido novo imperador de Roma.

Caliana estava noiva, prometida para casamento a Caio Tiriano, que era sobrinho em segundo grau do imperador. Tal união não garantia, mas dava aos Soeiros uma estabilidade política muito forte.

O sepultamento de Nênia teve grande comoção no senado, onde Viriato sugeriu uma lei instaurando o Dia Nêniano, onde as cinzas dos mortos devem ser honradas com o hasteamento da bandeira do Império Romano em todos os cemitérios e túmulos. Tal sugestão foi aclamada pelos senadores e muito bem recebida por Tibério, que se encontrava no senado ocultado por um capuz naquele dia.

Tibério já estava ciente da sagacidade daquele senador lusitano e após aquela demonstração de influência, ele removeu seu capuz e o senado fora rapidamente invadido por centuriões que faziam a guarda o imperador. Um tumulto de medo começou, mas logo se dissipou quando o imperador declamou palavras de tranqüilidade. Ele estava ali por um único motivo, escolher seu conselheiro político. Olhando para Viriato, ele disse:

-- “Sagaz com as palavras e veloz em raciocínio. Influencia e encoraja essa corja de abutres enfadonhos, enquanto entoa sua defesa por Roma. É de ti que preciso, prezado Viriato, e aqui eu o proclamo meu conselheiro político. Deixarás o senado e sua cadeira permanecerá vaga até que meu sobrinho case-se com sua filha e tome seu lugar”.

O senador Tárcio imediatamente se opôs, sentindo-se insultado pelas palavras do imperador e pela imposição ao senado de aceitar alguém tão jovem e inexperiente. Imediatamente ele foi acusado de traição a Roma pelo imperador, sendo ali mesmo sentenciado ao enforcamento público, como lição aos demais senadores que se opuserem às suas ordens. Por fim ele disse:

-- “Deixem a cadeira deste verme vaga. Nenhum outro senador o substituirá. Isto é para que sempre se recordem que Roma não admite instauradores do caos”.

Semanas depois ocorrera o casamento de Caio e Caliana. Caio era fraco e influenciável, mas tal condição era vista por Caliana como uma qualidade. E no fim, o senador Caio passou a legislar as causas que sua mulher ditava por de trás dos véus do senado. Eles tiveram um filho, ao qual foi dado o nome de Flavius Primus Soeiro.

Viriato, em seu ápice, tornou-se tudo o que sempre almejou, um dos homens de confiança do imperador, mas ele havia se afastado de sua filha, que era a única âncora que o continha. Influenciado ocultamente por Viriato, Tibério deu início a uma época de terror, espionagens e delações.

O lusitano influenciou tanto as idéias de traição em Tibério que não demorou muito para que o imperador o chamasse uma última vez:

-- “Por três anos eu o escuto e faço valer algumas de suas idéias. Aumentamos o tempo de serviço ao exército. Com astúcia, limitamos os comícios e laçamos o senado. Aumentamos a influência dos pretorianos.” – Viriato sorri, sente-se elogiado. -- “Então, pergunto-te. Deseja me dizer como governar este império? Deseja ocupar este lugar como imperador de Roma?” – A voz condolente do imperador começava a tomar um sombrio ar de ira e seus olhos espremiam ardência, enquanto seu rosto se enrugava rispidamente.

-- “Não, meu imperador. Você está enganado em suas conjecturas...” – Tentou se justificar, Viriato, bruscamente interrompido com a chegado de seis pretorianos ao salão.

-- “Tudo o que eu fiz tem um dedo seu. Tudo o que realizei possui sua influência. Sou acusado de assassino por meu povo e o senado critica meu governo. Meus soldados me temem, mas não me respeitam. Então, como posso eu estar enganado a seu respeito?” – Com o tom vociferante e esbraveja esta última pergunta, e se acalma.

-- “Homens, levem este homem. Anunciem que será enforcado não por traição, mas por tentar tomar para si o poder dado ao imperador romano.”

Viriato tenta emitir um último pedido de clemência, mas foi ferozmente agredido pelos soldados quando tentou se aproximar de Tibério. Em meio às pauladas e chutes ele desmaia e é arrastado.

Dias depois a notícia de seu enforcamento se espalha por toda a capital. Caliana, ao saber, se entristece profundamente, pois em seu íntimo sabia que este fim era previsível. Nada ela podia fazer quanto a ordem do imperador, mas ao menos ela teria permissão para unir as cinzas de seu pai com a sua mãe.

No dia de seu enforcamento, a Viriato não foi dado nenhum direito de falar. Morreria sozinho em meio a multidão que o assistiria. Em pensamento ele amaldiçoou:

-- “Tibério. Alguém o matará assim como tu me mataste, mas antes disso sofrerá da solidão que sofro agora. Isto eu te prometo, pois não lhe deixarei enquanto não estiveres morto em agonia”.

Do alto um corvo avista uma sacada de mármore, onde pousa. Ele olha curiosamente um homem que se aproxima. Tibério vê aquela figura negra e alada em sua sacada e a espanta. Ao se aproximar da mureta ele avista corvos por toda Roma, pousados às centenas em vários telhados.

Epílogo

Meses depois de Tibério ordenar a morte de Viriato, ele determinou que seu sobrinho se divorciasse de Caliana.
A filha e o neto de Viriato foram exilados de Roma e seus diretos de família foram todos negados, assim como os relatos sobre os Soeiros eliminados dos documentos da época. Eles seguiram viagem para a cidade de Balsa, na Lusitânia, mas apenas Flavius completou a jornada, quase dois anos depois.
Tibério, vários anos depois se auto-exilou e seu reinado apático foi encerrado com seu assassinato em 37 d.c. por seu sucessor, Calígula.

*Neste ponto, Soeiro nada mais era que o sobrenome dado a Viriato e sua família, quando este assumiu sua cadeira no senado, onde os demais senadores sugeriram seu novo batismo em honra a Roma.
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