por Lady Draconnasti em 11 Jan 2010, 23:27
Capítulo 05: Manhã Cinzenta
O sol pálido batalha para que seus raios tragam um pouco de luz ao mundo. O Joalheiro acorda em sua grande e confortável cama ao senti-los em sua face. Seus olhos escuros se abrem devagar e ele vê Susrra ao lado das cortinas de veludo vinho recém-abertas.
O grande quarto deixa-se banhar pelo morno calor. Do tapete vermelho-escuro do reino élfico aos móveis suntuosos de mogno, passando pelos quadros feitos por grandes artistas de sua raça às pequenas esculturas de pedra e mármore dos anões de Mithras. A confortável cama de casal do elfo se encontra no meio do aposento, entre duas das grandes janelas do aposento, quase oculta pelas sombras.
- Creio que sseja hora de desspertar, messtre. – Sussurra ela com um tom de voz apático. Sethallas percebe que a atenção dela está voltada à janela grande ao seu lado.
- Algo errado, Susrra? – Pergunta ainda sonolento, removendo o grosso lençol vermelho, afastando um pouco a gola de sua folgada camisa branca de algodão, que aperta seu pescoço.
Alguém bate à porta. A pequena serviçal afasta-se da janela e abre a passagem para uma mulher formada, de vinte e oito invernos, de feições gentis e bem cuidadas. Grandes olhos claros, castanhos, como seus cabelos ondulados. Lábios rosados de doce aparência que agraciam ao imortal com um ligeiro sorriso de “bom dia” e uma bandeja de prata em suas mãos. É Cibelle, sua empregada e confidente.
Sobre a peça metálica, algumas uvas vermelhas e pães torrados se encontram em pequenos pratos de porcelana alva. Junto a esta, um recipiente contém uma fresca geléia de morango e uma taça argenta onde há leite, ainda morno. A jovem serviçal curva-se discretamente numa reverência ao mestre e sai do aposento.
Sem entender muito, Sethallas tenta se levantar, mas é detido pelas palavras da empregada.
- Não, meu senhor, não se levante... – Fala com voz calma. Mas essa calma o elfo sabe ser fingida.
Ela se aproxima de seu senhor e senta-se na beira da cama, pondo a bandeja em seu colo. Joga os cabelos, antes apoiados em seu vestido cor-de-terra, para trás e arruma os travesseiros dele para que possa acomodá-lo melhor.
– Neste mesmo dia, dos últimos dez anos, você me serve a refeição matinal aqui no quarto... - Indaga o Joalheiro em suspiro, enquanto se recosta.
- É por que nós notamos que o senhor fica mais triste nesta data, meu senhor. E nós não gostamos de vê-lo assim. – Ela responde com sua voz terna e agradável, como poucas vezes Sethallas encontrou nos humanos.
Ela se demora observando-o serenamente, perdida em seu rosto de fascinante morbidez. Recorda-lhe os anjos esculpidos nas entradas da cidade. Belos, tristes e inalcançáveis...
A mulher se levanta da cama e vai na direção a uma cadeira adornada, não muito distante do leito, onde roupas se encontram dispostas. Recolhe-as com um ar de satisfação o qual seu patrão finge não perceber. Coloca-as em seu braço e vai rumo à porta. – A propósito, meu senhor, o seu banho já está preparado. – Diz ela suave, ao tocar na maçaneta ricamente trabalhada em metal escuro. Seus olhos se encontram por um breve momento, aumentando a dor no peito do elfo.
- Obrigado, Cibelle – Responde ele com um murmúrio.
Ele sabe não ser culpa dela. A serva em tudo se parece com sua falecida amada. Na voz, no rosto, nos movimentos... Mas ela não é a sua Cibelle, a mãe de seu filho.
Recorda-se de quando conheceu sua mulher. Ele estava fugindo de seus muitos inimigos, estava gravemente ferido. Ela era a filha do prefeito da pequena Sellune e cuidou de seu corpo durante longos dias febris. O calor de sua gentileza o tirou várias vezes da fria meretriz que ele tanto ansiava e a qual chamam de morte.
Recorda-se de sua doce esposa acordando-o terna e carinhosa, usando um vestido leve, que lhe era tido como favorito nos dias quentes de verão. Cores claras que ressaltavam o rubor de sua face ao beijá-lo, e frutas frescas as quais se divertia colocando-as em sua boca. Depois, vinha seu filho, na época uma criança amável, e o abraçava com força... Hoje, essas lembranças tão desbotadas pelo tempo e pela vida parecem nada mais que um sonho de infância.
Come devagar e sem prazer, como se continuar a viver fosse uma tortura e se levanta, pondo a bandeja de lado. Dirige-se ao lavabo, pensativo, “algo mudou”. A água morna se encontra na banheira, apenas esperando por ele.
Abre a camisa e a retira, fazendo com que o tecido fino deslize por sua pele alva e o mesmo faz com a calça. Pequenas e grandes cicatrizes se mostram esbranquiçadas, ao longo de seu corpo magro, porém forte, quase todas causadas por objetos afiados.
Entra e se acomoda lentamente, sentindo cada músculo tenso de seu corpo magro, relaxando com a temperatura agradável. Joga a cabeça para trás e deixa perder-se em divagações, procurando distanciar a atenção de seus pesadelos. A única forma eficiente a qual ele conhece é ela...
É casada há doze invernos com outro empregado da casa, tenta manter uma boa aparência apesar de todo o trabalho. Gosta de flores, calma, de caráter forte, não tem filhos... Um desperdício, em sua mais sincera opinião...
Dizem que a culpa é dela por não haverem rebentos entre o casal. Dizem que mesmo se entregando ao marido, não consegue fazê-lo direito. Por um momento o elfo se pergunta como é “não fazer direito”. Como é que duas pessoas, unidas há mais de dez anos por um matrimônio, conseguem “não fazer direito”? Até hoje não entende essa forma de esconder a própria incapacidade dos humanos. Ocorre-lhe a questão se o problema não é com o marido.
Ousariam formular boatos em relação a sua honra, por ela ser a pessoa mais próxima do Joalheiro, mas ninguém conseguiu imaginar algo convincente. Afinal, todos sabem que Sethallas, por ser um elfo ainda sente a perda da família. Então ele nunca seria capaz de tocar outra mulher até se recuperar do choque...
Quem diria que sua apatia serviria de escudo para boatos? Idiotas...
Muitos o criticam, tentando fazê-lo deixar de viver o passado. Uns imaginam sua tragédia, outros zombam de sua virilidade. Nenhum sabe a verdade, e se depender dele, nunca saberão.
Seus olhos pousam lentamente em seu braço esquerdo, onde uma longa serpente negra se encontra desenhada. Não imaginava que ela fosse se tornar uma espécie de aviso por onde passava. E depois do incidente com Kyasid, decidiu de vez escondê-la dos olhos de todos.
Sai da água, enxuga-se calmamente e retorna ao quarto, recompondo-se. Abre o armário e toma suas vestes para esse dia. Calça negra, camisa de seda branca, um colete de couro com desenhos intrincados e calça suas botas escuras. Hoje irá a cavalo...
Desce os degraus e encontra a jovem serviçal sentada ao chão, diante da lareira, assistindo as brasas lutarem para se manterem acesas. A sala está fria e silenciosa, como a maioria dos aposentos da casa.
- Susrra, avise para prepararem meu cavalo. – Ele diz sem aguardar que ela o olhe. – Em breve eu estarei lá.
Desperta de sua diversão, pelas palavras de seu senhor, a jovem se levanta lentamente. Com uma breve reverência, ela se vai sob os olhos atentos do elfo. “Falta pouco”, ele pensa tomando rumo para a sala onde guarda as jóias prontas. Lá encontra Cibelle, Sadira e Matisse a varrerem o aposento.
Pensativo, ele fita aquela que tem tomado parte de sua atenção desde que chegara na casa.
Despede-se delas e toma seu caminho, em direção ao estábulo, onde encontra a garotinha esperando. Ao seu lado, a majestosa puro-sangue que o acompanha sendo segurado pelo tratador de ombros largos, Abel, e seu aprendiz, Roan, inquieta e arisca.
O elfo ergue a mão e toca o focinho do agitado animal. Acaricia-o por um breve momento, fazendo com que ele se acalme. O homem o olha cansado. Ainda não pegara a simpatia dessa égua, isso era visível, e o imortal sabia qual a razão.
Abel era um homem rude com pessoas e com animais, embora não demonstrasse isso diante do elfo. Sabia disso pelos olhos escuros daquele humano que transbordam desgosto constante, pelas marcas no corpo de sua submissa e torturada esposa, e pela antipatia absoluta da montaria. Por mais hostil que fosse com aqueles que tinham que cuidar dela, a égua jamais havia se portado da forma como vem se portando na presença desse homem.
- Não se preocupe, Aasteran é realmente difícil de ter confiança em seus tratadores. – Diz ele ao mais jovem. – Mas você tem o mesmo talento que seu pai, logo irão ser bons companheiros.
- Muito obrigado, senhor. – Diz Roan, passando as rédeas da montaria para o Joalheiro.
Ambos ficam surpresos ao ver a rapidez com a outrora agitada Aasteran se aquieta. Como se o animal e o elfo fossem um, eles partem em uma corrida, quase sem o manuseio das rédeas pelas mãos do imortal. Cruzam as altas grades de ferro que se encontram abertas, assustando a serva Lenora, que estava distraída, limpando a passagem enlameada do jardim.
Fazia tempo desde a última vez em que o Joalheiro saíra. Todos por quem passam os cumprimentam, já sabendo de seu ritualístico passeio que sempre tinha início ao seu despertar e que só terminava quando a mais densa escuridão ameaçava se deitar sobre suas cabeças.
- Bom dia, Mestre Joalheiro. – Diz Liz, a idosa dona do armazém com uma expressão feliz no rosto fazendo-o reduzir o galope da montaria. Pelo visto seu estabelecimento não sofrera danos – Vai visitar seu filho hoje?
- Sim, senhora Liz. – Responde ele. – E como vão os preparativos do casamento de sua adorável filha?
- Vão muito bem, Mestre. – Ela respondeu com um sorriso. – Se as coisas continuarem bem, no início da primavera os dois estarão unidos sob a graça divina, como marido e mulher. Farei questão de convidá-lo pessoalmente!
O elfo limitou-se a um sorriso educado e voltou ao seu rumo, desejando-lhe uma boa manha, enquanto tentava puxar pela memória o nome do jovem casal. Sabia que um deles lhe era deveras interessante...
O corcel negro e vigoroso caminha pelas ruas pavimentaras com pedras, tendo sobre o colo de seu passageiro, um ramalhete de rosas brancas dados pela gentil florista da praça central.
Cruza a cidade e passam pela saída ao sul desta, onde há um bosque verdejante... Um bosque que ninguém deseja entrar... As folhas amareladas ainda molhadas deixam pingar seu orvalho misturado com a água da chuva. O silêncio impera neste local. Nem mesmo os pássaros se atrevem a cantar.
Reduz os passos de Aasteran. Seu semblante calmo agora dá lugar a uma desconhecida angústia a qual só sentira na noite anterior. Há algo diferente no ar, pode sentir isso com facilidade, e para sua irritação, não consegue perceber de que se trata.
Chega ao local. Uma clareira grande, com uma fenda ocupando um considerável espaço. Nos pés de um dos túmulos de pedra e ouro, onde os nomes sulcados em sua superfície repousam, há uma máscara e um elmo demoníaco...
O elfo empalidece ao ver ambos os objetos e sente suas pernas fraquejarem. O sonho foi real...
Seu corpo se curva, incapaz de suportar o peso que parece sentir sobre si, os joelhos cedem e encontram o chão enlameado. Mechas encobrem os olhos e derramam-se sobre a fina grama suja. As mãos vão ao solo, deixando que as rosas brancas sejam feridas pela queda. Os ombros antes inertes, agora tremem.
Pode sentir novamente o cheiro do sangue fresco que correu naquela noite terrível. Ouvir o crepitar das chamas que lambiam as construções. O toque furioso da negra lâmina profanar corpos de inocentes. O gosto amargo de ter o filho envenenado e agonizando a sua frente sem nada poder fazer para amenizar seu sofrimento...
O ar torna-se pesado, as árvores parecem chorar ao vento. O sol esconde-se atrás das pesadas nuvens de chuva, as quais deixam novas lágrimas de prata salpicarem pelas folhas.
...
Status: Cursed
Alinhamento do mês: Caótica e Neutra