Um dia qualquer – já não consigo me lembrar do que fazia –, resolvi pegar uma passarela para agilizar minha ida – ou volta. Essas construções sinistras, geralmente pintadas de amarelo, com uma longa rampa espiral para se subir ou descer: monumentos feiuscos, mas politicamente corretos. Com pressa, comecei a descer, e não havia ninguém por perto.
Cerca de quinze minutos depois é que percebi que alguma coisa estava errada: continuava a descer, mas não chegava à rua; a paisagem urbana desvanecia e, assustado, pensei em voltar. Entretanto, ao olhar para cima, percebi que aquela rampa se espiralava em direção aos céus e se perdia por entre nuvens, daí a decisão: mais fácil descer que subir.
Enquanto os prédios, a fumaça e as buzinas desapareciam, eram substituídos por outros sons e imagens e sensações; parecia que, quanto mais eu descia, mais diferentes eram as paisagens. Ora uma vegetação tropical cerrada com uma garoa fina e tempo abafado, ora cactos e arbustos fustigados por ventos arenosos e tórridos. O tempo passava, eu podia sentir e perceber: meus cabelos e barba cresciam, minhas roupas se esfarrapavam, dia e noite se alternavam, estações do ano voejavam pela longa espiral. Ao longe, aquela estranha e interminável paragem – nem sombra da cidade.
Certa vez, quando a rampa acabou, surgiram degraus, dos mais variados tamanhos e materiais; variavam também de acordo com o clima e a vegetação dominante. Na maioria das vezes, pareciam ruínas de civilizações perdidas. Em diversos pontos, corria água cristalina; pequenos rios escoavam pelas laterais da escadaria e geralmente desaguavam para fora. As vigas que se ligavam ao pilar central – que já parecia algo antiqüíssimo também – estavam sempre cheias de plantas e árvores, muitas vezes frutíferas. Eu vivia, e bem, dessas benesses. Ocasionais animais apareciam, mas jamais me incomodavam; chegavam a adicionar certo colorido à cena, algo de mais inusitado e estranhamente natural nesse cenário já tão grotesco.
Já nem me lembro de quando apareceu a primeira pessoa. Por vezes, uma pessoa me alcançava na descida, ou eu mesmo encontrava alguém perdido pelo caminho; o cruel da situação é que eram companheiros de viagem temporários: por mais que eu me esforçasse, sempre acabavam por desaparecer. A alegria inicial, a aparente diminuição do suplício, tudo isso costumava acabar. Jovens, velhos, crianças, mulheres, cães; não importava quem fossem, não importava quão interessantes ou repulsivas fossem suas companhias, todos acabavam desaparecendo dentro de alguns dias. Igualmente não sabiam porque estavam ali, na espiral descendente, mas eu era mero oásis na jornada de outrem, como eles eram para a minha. E isso, como tudo, embotava meu coração, endurecia meus sentimentos.
O ápice do desespero foi quando, em um breve recesso de minha férrea determinação a nada sentir, acabei me apaixonando por uma companheira de viagem; a descida só piorava quanto maior era, para nós, a consciência de que brevemente nos separaríamos para sempre. Chegamos a nos amarrar com cordas improvisadas, e tentávamos não dormir; isso só nos deixava cada vez mais angustiados, mais temerosos, mais paranóicos. E quando a espiral se tornara primaveril, quando eu tentara não dormir mais um vez, caí no sono e nunca mais a vi. Acordei de supetão, tentei correr para baixo e para cima, mas, como esperava, não a encontrei; e foi assim, nesse estertor de agonia, que acabei tropeçando.
Nunca algo parecido tinha me ocorrido; mas rolei pela escadaria sem fim, e ao finalmente parar, vi que meu sangue jorrava copiosamente e escorria como um rio pelo curso espiralado – e desmaiei. Acordei, creio, muito tempo depois; o clima mudara e eu estava cheio de pó. Levantei aturdido, cheio de hematomas e cortes, e ainda vaguei por um tempo, até ter uma idéia lúgubre.
Não foi o estrangeiro que disse que nos acostumamos a tudo na vida? Seja quem fosse, tinha razão; minha desesperação inicial foi lentamente substituída por certa letargia, uma sensação renitente de que permaneceria ali para sempre. A idéia lúgubre, a do suicídio, criou um desdobramento ainda pior: despencar dali, naquela imensidão sem fim? E se eu caísse sem chegar ao fundo, podendo morrer até de fome, em queda livre? Não poderia haver tormento maior que passar essa eternidade a morrer lentamente, em queda livre, depois de tanto tempo de declínio para o fim daquela espiral sem fundo. Desisti rapidamente; a perspectiva era assustadora demais.
Meu sangue, percebi depois, corria lentamente para baixo; óbvio, se a tendência de tudo é decair, declinar, ir para baixo. Mas resolvi continuar seguindo as escadas e meu sangue, que serpenteava e cascateava pelos degraus. Sem ter noção do tempo, pensei ter passado anos perseguindo meu próprio sangue, afundando cada vez mais na escadaria. Só fui perceber quanto tempo tinha passado, só fui perceber quando tinha envelhecido, só fui perceber quão longa minha descida tinha sido assim que, ao gesto mecânico de descer um degrau, encontrei o chão. Plano. Frio. Alguns passos adiante, uma porta entreaberta, pétrea, provavelmente tão antiga quanto o resto da estrutura. Um filete de meu sangue, derramado havia tanto, esgueirava-se pela fresta, debaixo da réstia de luz. Estaquei em frente daquela porta, e devo ter passado anos hesitando.
Já que o tempo não era mais importante, inimigo ou aliado, ponderei longamente sobre sair; já me sentia parte daquela espiral que sempre acreditei não ter fim. Liberdade já me era uma questão estranha; até queria sair, mas não tanto como me sentia seguro em minha eterna solidão. Pensei até em dar as costas para a porta e subir a espiral... mas já tinha levado tanto tempo descendo, que subir me parecia impossível; era o tipo de decisão que deveria ter feito assim que me vi preso ali. A tendência natural das coisas era decair, descer; é a direção mais fácil, mais simples, e eu já estava tão velho, tão encanecido que não suportaria a ascensão.
É por isso que escrevo hoje este diário, por menor, incompleto e apressado que seja. O mistério daquela porta me fascina e me repulsa; sinto que, esteja o que estiver além da passagem, minhas memórias podem servir a outrem, àqueles que, um dia, podem vir a trilhar meu labiríntico caminho. A quem puder ler estas memórias, boa sorte na jornada; agora me despeço em direção ao desconhecido.