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Ferrugem

MensagemEnviado: 06 Mar 2008, 19:19
por Mirallatos
Não costumo prosear muito, me acho meio torto pra isso. Mas vez ou outra...

Ferrugem
Ataualpa S.Pereira

Muitos anos se foram desde que um único cigarro o satisfez. Ele sempre quer outro e mais outro, mas quanto aos beijos da esposa, não pode dizer o mesmo. Sorri ao pensar na comparação, avalia e decide ser verdade. Ambos os vícios começaram na juventude, na época das lambretas, jaquetas e saias rodadas. Tudo era novidade. Inclusive o que elas traziam entre as pernas!

Ele se sentia mais vivo naqueles dias, pois uma sexta-feira como essa – fria e chuvosa – não seria obstáculo; ligaria pro Jota, depois passaria na casa do Adalberto e finalmente iria para o “Vertiginous” ver “The Silvery” tocar. Aproveitaria pra dançar com quantas meninas lhe permitisse a sorte, fazendo aqueles cochichos marotos, dando aquelas suspiradas de paixão fingida. E como sempre, aparecia uma rapariga mais ousada, disposta a dar uma voltinha na praia. Depois – de porre – ele passaria na casa de Julieta e faria uma cena dramática, até algum vizinho ameaçar chamar a polícia. No dia seguinte, claro, ligaria pedindo desculpas, dizendo o quanto estava arrependido e querendo saber se ela ainda gostaria de se casar com ele.

Ah...The Silvery! Bandas imitando a moda inglesa eram comuns naqueles dias. Será que alguém lembra dela? Talvez um outro velho insone, conclui. Se bem que o Adalberto nunca foi muito nostálgico... e deve dormir feito um hipopótamo. O velho sorri da outra comparação, mas aos poucos tudo se transforma numa tosse crônica que lhe rouba o fôlego: “Você teve um aumento permanente no volume dos espaços aéreos, talvez uma lise das paredes alveolares além dos bronquíolos terminais”.

Todos esses anos de cigarro só podiam resultar nisso – aliás –, todos esses anos de qualquer coisa teriam deixado ele assim. Porque até o Jota envelheceu. E agora ele podia ouvir o estalar das juntas de sua esposa, como dobradiças velhas presas a ossos enferrujados. Ele mesmo – num tremendo esforço – levantou para urinar e sentiu corpo ranger feito um portão.

A pele está se descolando dos ossos dia após dia, tal aqueles cartazes do Teatro Municipal. O espelho não mente. A boca murchou, os dentes encardiram e o cabelo se foi quase que por completo. Ele fita os próprios olhos por alguns instantes, percebe que também perdera algo neles. Cadê você? E aquele olhar que lhe me deu uma esposa? O velho tira a camisa e estremece com o frio. Durante alguns instantes ergue o braço, força o bíceps, mas uma grande quantidade de pele murcha o desencoraja a continuar. Até que:

- Péricles, não vem pra cama? – A velha já estava ali há algum tempo. Ela bocejou, esticando um pouco as bochechas flácidas – É o reumatismo? – perguntou fingindo inocência.

- Não – responde, também fingindo coçar a nuca. Quanto tempo será que ela está ali? Por um instante ele a observa através espelho, o corpo esquelético dentro da camisola, os olhos enormes atrás dos óculos e o cabelo branco desgrenhado. As lembranças da lua de mel retornam: naquela noite ela também acabou de cabelo bagunçado.

- Vem pra cama Péricles.

- Já vou, já vou.

Ele lava as mãos sem coragem de olhar no espelho novamente, depois veste a camiseta e vai até o criado mudo pegar os... cigarros? Vê a foto do casamento, tinha pouco mais que vinte anos. Pensa em comentar alguma coisa, mas a velha já está ronronando. Depois apaga o cigarro e começa a cochilar. Por um momento as lembranças começam a se misturar num sonho, ele revê amigos que se foram, os nascimento dos filhos, as amantes...

- Eu sonhei com aquela lambretinha vermelha. Lembra? – ela se virou subitamente para ele com um ar sorridente, mas o velho dormia. – É sempre assim, me rouba o sono e dorme feito um hipopótamo!

Péricles ouviu as palavras distantes de Julieta, quis sorrir, mas foi levado pela ferrugem da velhice.

Lembro, lembro sim.

Ferrugem

MensagemEnviado: 10 Mar 2008, 22:32
por laharra
Não costumo prosear muito, me acho meio torto pra isso. Mas vez ou outra...


Cara, se acostume. Pelo nosso bem. Só isso. :victory:

Ferrugem

MensagemEnviado: 10 Mar 2008, 22:53
por Vatek
Ótimo conto. Muito bem trabalhado.

E,

laharra escreveu:Cara, se acostume. Pelo nosso bem. Só isso. :victory:


²

Ferrugem

MensagemEnviado: 10 Mar 2008, 23:27
por Speranza
Putz, ficou muito bom! Eu achei muito legal quando li:
Péricles ouviu as palavras distantes de Julieta, quis sorrir, mas foi levado pela ferrugem da velhice.

Então eles casaram mesmo!

Adorei a exuberância dos detalhes: a comparação do hipopótamo, a analogia do cartaz de teatro...

Excelente! Parabéns!

Ferrugem

MensagemEnviado: 11 Mar 2008, 14:03
por Elara
Mira,

Você é ótimo, na prosa ou no verso. Parabéns pelo texto. =)

Chero!