O Som do Silêncio (Finalizado)

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O Som do Silêncio (Finalizado)

Mensagempor laharra em 07 Dez 2007, 00:45

O Som do Silêncio
Estilo: Fantasia medieval


CAPÍTULO I
O toque


– ABRA SUAS MÃOS e deixe-me sentir seus medos e receios. Deixe-me entender o que você pensa e então ajudá-lo a superar tudo isso.

A voz da mulher pareceu sincera, e havia alguma coisa naqueles olhos castanhos claros que acentuavam a ordem. Era como se Reger estivesse hipnotizado pela forma que ela o olhava e também como as palavras saiam cândidas daquela boca carnuda. Havia uma harmonia tão grande naquele rosto que era impossível ignorar qualquer sugestão vinda dela. Ele aceitou a proposta.

A mulher tomou suas mãos com um toque frio em cada uma delas, liberando uma energia hipnótica no corpo robusto de Reger. Ele tremeu, assustado pelo contato nervoso, e desejou ter a sua espada na bainha para tocá-la em um pedido silencioso de proteção aos deuses dos guerreiros. Ela sorriu e então fechou os olhos para iniciar o transe mágico que supostamente livraria Reger de todos os seus problemas.

E agora?, ele se perguntou, olhando para aqueles cabelos negros que desciam ensebados até o chão, onde estavam sentados de pernas cruzadas. A espera e o ócio eram coisas que não combinavam com Reger. Mais para passar tempo do que propriamente por curiosidade, ele perscrutou cada centímetro daquela tenda escura, parando seu olhar em cada pequeno boneco de penas e totem de madeira. Peles de urso cobriam espaços esburacados no tecido do abrigo, enquanto dentes afiados de predadores estavam espalhados em um círculo perfeito ao redor dos dois. Para evitar os maus espíritos, um selvagem com o cabelo espetado havia lhe dito. Na primeira vez que havia visto a barreira, Reger se questionou como aquilo poderia impedir um ser de outro mundo de entrar no lugar. Eram apenas ossos. Se ele podia passar, por que uma alma não podia?

Com uma dificuldade enorme, teve que engolir sua saliva para não cuspir de desgosto naquele ambiente supostamente sagrado. Seria uma vergonha ser expulso dali como um animal e ainda ser desrespeitado por aqueles deuses selvagens, ainda mais quando precisava tanto deles. Apesar de não ter certeza absoluta sobre a ascendência divina da mulher ou da vila, sentir-se como um mentiroso que arrisca tudo era muito mais confortável do que não tentar nada para acabar com aqueles sonhos profanos. É bom que me ajudem agora, deuses. Ou então vão perder a oferta de um bode. Peguem ou deixem, devaneou.

Uma tremida sacudiu a mulher e a mão de Reger, que tirou sua visão de uma pequena cabeça encolhida em uma estante e a levou novamente até a selvagem. Ela se sacudiu mais uma vez, e outra e outra. Então ela parou, e o fogo das velas bruxuleou rapidamente, até que foi minguando e chegou ao ponto em que não restava nada a não ser a escuridão naquela tenda sombria das terras de Dink-Rabur.

Subitamente, dois pontos vermelhos surgiram na penumbra para fitar Reger, que praguejou mentalmente e puxou suas mãos do contato com a mulher. Mas elas estavam presas com uma força que nem seus musculosos braços puderam subjugar. Ele puxou, fez força e tentou se levantar. Tudo em vão.

– Não resista – a mulher falou com ele, mas agora a voz era urgente.

O que era respeito agora tinha virado medo por sobrevivência. Reger respirou fundo e puxou novamente com todas as suas forças, sentindo o sangue fluir aos seus miolos e o deixar tonto. O seu corpo agora estava se paralisando aos poucos, ficando à mercê daqueles olhos vermelhos malignos que ele sabia muito bem o que significavam.

Um olho vermelho a te procurar e então um demônio irá te achar. Dois olhos vermelhos e o calor. Se renda, o maldito te pegou. Mais conhecido do que esse ditado apenas as lendas do surgimento dos reinos do oeste, e ainda que Reger tivesse achado a rima ridícula em outros tempos, ela agora não parecia tão engraçada.

– Eu não sou um demônio – a mulher voltou a falar.

Como ela pode saber o que eu estava..., Reger cogitou, mas a voz grave o interrompeu.

– Conte-me seus medos. Conte-me seus receios.

A armadura de desconfiança do guerreiro caiu. Havia tanto tempo que ninguém o entendia. Havia tanto tempo que ninguém o escutava. Quando lhe falaram que ali ele encontraria respostas, não imaginou que elas viriam assim, como uma conversa que há muito tempo ele não travava com ninguém. Que se danassem os olhos vermelhos, porque agora ele iria poder dizer o que sentia.

São os pesadelos, anseios que tomam conta de minha mente na hora do sono. É como se eu nunca pudesse voltar a dormir em paz novamente.

– Fale-me dos sonhos.

Há uma espada e sua lâmina é escura como a tinta dos papiros. Tão escura que é como se tivesse sido feita com um pedaço da noite. Há imagens irreais que aceleram meu coração. E também há uma voz, chamando meu nome, com uma urgência que gela meu espírito e me acorda, revelou Reger, fitando os olhos rubros.

– Sim, eu posso vê-la... Mas também sinto um mal abraçando a espada. Um mal antigo que ultrapassou gerações e que... Não...

A interrupção intrigou Reger.

O que foi que você viu?

– Você acredita nos deuses do ocidente, guerreiro?

No sol, na lua e na estrela vermelha? Aqueles que eles chamam de Selleni, Illuni e Rathni? Não sou um seguidor desses deuses.

– E em que você acredita?

Reger refletiu com a pergunta. Ele poderia muito bem dizer que não seguia nenhum tipo de religião, mas o simples fato de negar a crença em qualquer coisa o fez se sentir mal. Era como se ele não tivesse uma alma a zelar, ou um abrigo para seu espírito após a morte. Quando perguntavam aquilo pessoalmente, ele apenas apontava para sua espada e a conversa se encerrava.

Eu...

– Ainda não achou seu caminho. Eu entendo. Mas há uma estrada que você pode seguir. Nela, você vai achar a paz dos sonos, e também a paz que lhe foi tomada durante sua infância. E há muitas outras glórias esperando por você, Reger, se seguir em direção ao norte, dentro d’A Garganta. É lá que tudo isso lhe espera”

Como você pode saber disso? Quem é você?

– Alguém em quem acreditar. Alguém em quem você encontrará o som através do silêncio no momento necessário, e que lhe dará de volta algo que foi perdido.

O forte aperto que prendia as mãos de Reger afrouxou, e os olhos vermelhos da selvagem voltaram ao seu tom castanho. Ela respirou de supetão, como se estivesse buscando o ar desesperadamente. Obrigado, ele pensou, sem esperar respostas. Levantou-se, observado pelo olhar atônito da mulher, e saiu da tenda, protegendo os olhos da forte luz do sol da manhã.

Subiu no cavalo e então galopou como se o diabo estivesse em seu calcanhar, sentindo que um futuro novo o esperava.

Um futuro em que pudesse ser escutado.

E principalmente entendido.
Editado pela última vez por laharra em 25 Fev 2013, 00:06, em um total de 8 vezes.
Tentando encontrar inspiração para terminar o conto abaixo:
O Som do Silêncio: Parte IV - A decisão
Reger está às vésperas de uma batalha onde decidirá seu futuro. Durante o que podem ser seus últimos momentos com a Espada e com Alyse, ele se pega pensando sobre a validade de suas aspirações. Acompanhe o conto no link a seguir:
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O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor Ermel em 07 Dez 2007, 03:20

Uma boa introdução. Uma narrativa que flui de modo diferente, achei estranho os 'miolos', não era algo que esperava, mas que caiu de modo divertido no conto.

Vamos ver o que acontecera com Reger.
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O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor Volcano em 10 Jan 2008, 22:15

Céus!!!

Apenas uma e desesperada palavra: CONTINUE!!!
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O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor laharra em 18 Jan 2008, 03:08

Pessoal, capítulo 2 postado lá no primeiro post, logo abaixo do capítulo 1.

Ermel, obrigado pela leitura e elogio. A palavra miolos entrou mais pelo fato do ponto de vista da narração ser de Reger, um guerreiro que se acostumou a ouvir esse tipo de coisa. Tento deixar o texto bem próximo de como ele pensa. :cool:

Quanto a Volcano, gostei do entusiasmo do seu post. Posso dizer que ele me fez voltar a escrever o conto, e ao mesmo tempo acabou aumentando minha responsabilidade de fazer algo no mesmo nível do primeiro capítulo. Vê aí e me diz se ficou à altura.

Como disse antes, não vou prolongar muito a história. Pretendo concluir na parte 4 ou no máximo na 5, e olhe lá.

Abraços, pessoal.
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O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor Dahak em 23 Jan 2008, 01:17

Hun...
Que tal se você colocasse a segunda parte do conto em um novo post dentro desse tópico?
É um padrão que foi desenvolvido ao longo dos anos por aqui, ficaria de mais fácil visualização, evidencia mais o tópico e etc ^^"

Volto com os comentários em breve ;)


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O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor laharra em 24 Jan 2008, 00:22

Seguindo a sugestão de Dahak, o segundo capítulo segue nesse post. :cool:

CAPÍTULO II
A Garganta


ELA SE ESTENDIA como uma enorme bocarra, engolindo os raios solares e escondendo-os em algum lugar lá embaixo, dentro das profundezas da terra. Reger se debruçou com cuidado para espiar o desconhecido, tendo seu coração apertado todas as vezes em que pensava como descer para aquele lugar.

– Não dá para descer. É impossível. Não dá mesmo para descer. Não dá repetiu o jovem Lem mais uma vez desde que saíram da cidade. Reger fechou os olhos e suspirou, impaciente com aquela insistência em desistir. Mas ele estava decidido.

– Seremos os primeiros. Podemos fazer isso, Lem – falou Gorkuff em uma voz altiva, cheia de confiança, que Reger invejava. – Imagine o que tem ali embaixo. Ouro e muitas outras coisas, Lem. E seremos os primeiros. Em todos os cantos, das terras ermas ao reino de Jalor, das planícies de Warinsc às ilhas de Inverne, eles cantarão os nossos nomes. Lem, o intrépido; Gorkuff, o sem-medo; Vicory, o rápido; e Reger, o... – , neste momento ele hesitou.

– O mudo – completou Vicory, olhando de sobressaio para Reger, que preferiu ignorá-lo. O mercenário era como uma víbora, olhos negros semi-cerrados sempre que destoava seu veneno da ironia, algo que sabia fazer muito bem. Seu cabelo caía na frente do rosto com uma franja despretensiosa, bagunçado atrás e com o forte cheiro de óleo de gordura de porco, usado para mantê-lo no lugar.

Lem passou a mão direita nos cabelos castanhos, tirando-os da frente da testa e depois coçou o cocoruto.

– Mas vocês vão primeiro. Se vocês caírem e morrerem, eu não desço nem que a vaca da minha mãe volte do inferno e puxe os meus pés. Não mesmo – bradou e então fez um círculo no ar com o dedo, o sinal de Selleni.

A risada de Gorkuff foi como um espirro de cachorro, na melhor comparação que Reger pôde pensar no momento. Feia, mas autêntica o suficiente para fazê-lo sentir um pouco de alívio. Ele não tinha como confiar totalmente naquele homem que acabara de conhecer, mas havia algo no rosto cansado que o tornava razoável.

Reger rasgou sua própria garganta com um sopro, fez mira, e cuspiu n’A Garganta, o lugar onde a selvagem o tinha mandado. Se é o que ela quer, que se dane, é para lá que eu vou, pensou, enquanto sua saliva viajava vários pés em direção ao que todos chamavam de porta do inferno na terra.

– Vamos indo. O homem vai nos pagar e ele falou que queria um trabalho rápido quando nos chamou – disse Gorkuff, desamarrando a corda de sua mochila nas costas.

– Ele falou mesmo? Eu não ouvi ele falar nada – Vicory tirou sua própria corda, colocou um dedo na boca e levantou para o céu. – Os ventos estão calmos, então eu não acho que os demônios lá dentro estarão agitados. Deve ser quente no inferno, pelo o que dizem, mas os capetas não devem estar tentando sair hoje.

– Você está falando sério, Vic? Tem demônios lá dentro? – perguntou Lem, fitando a grande sombra escura.

– Claro que tem. Sua mãe deve estar se divertindo com eles agora. Quando estivermos dentro, lembre de fazer silêncio para não interrompê-los – zombou Vicory.

Foi muito rápido, mas logo depois de Vicory falar, Reger viu Lem dando um passo para frente, querendo ver um pouco mais longe. O terreno arenoso cedeu e o jovem escorregou para o abismo. Reger gritou, fazendo um berro gutural para avisar a Gorkuff, que estava mais próximo. Ele entendeu e se jogou no chão em direção ao buraco, agarrando Lem pela camisa. Reger segurou Gorkuff e prendeu seus pés em uma rocha, para não ser arrastado junto. Virou a cabeça para o lado e viu Vicory olhando atônito para ele.

– Merda. Me segura, me segura – berrava Lem. Vicory finalmente acordou e correu para amarrar uma corda em uma das imensas formações rochosas que cobriam o lado oeste da Garganta. A outra ponta ele jogou para o jovem, que em pouco tempo estava em terreno seguro novamente.

Passado o susto, todos se sentaram por um minuto, retomando o fôlego. Reger percebeu, sem precisar olhar novamente, que Vicory estava fitando-o. Um olhar que ele sabia o que significava. Um olhar pior do que o de ódio e da gozação. Um olhar que só fazia piorar o silêncio que era sua vida.

Reger o havia visto pela primeira vez quando criança, ao redor de uma das inúmeras fogueiras que iluminavam os campos de Sullastian. Uma batalha estava por vir na manhã seguinte, então os homens se embebedavam e contavam histórias para disfarçar o nervosismo que remexia as tripas e tirava o sono. Reger era o centro das atenções, recebendo piadas dos mais diversos tipos. Em certo momento, não havia como agüentar mais, então ele se levantou e os xingou de bastardos nojentos, filhos de vacas e os amaldiçoou ao inferno. Ou pelo menos pensou que tinha feito aquilo.

– É a sua vez, Reger – falou Gorkuff, acordando-o. Ele amarrou trapos de pano nas mãos e segurou na corda. Tocou no cabo de sua espada, sentiu-se mais leve e então deixou seu corpo se soltar no vazio, para enrolar seus pés na corda. Passou a descer, sem olhar para baixo.

O tempo foi passando e cada espaço vencido era feito vagarosamente. Lá embaixo descia Vicory, enquanto logo acima Lem esperava sua vez de começar. O trabalho de paciência fez Reger pensar novamente naquela noite viva do passado. Logo depois que gritou, um silêncio mais fino que uma agulha espetou seu ouvido. Não só os homens que estavam ao seu redor, mas também os das fogueiras mais próximas o encaravam, com aquele olhar maldito no rosto. O único som que veio depois foi o de um deles. “Você fala como se as palavras saíssem de sua bunda, garoto”. Alguns poucos risos soaram lentos no campo, mas aquela acabou sendo a última piada da noite. Ainda assim, ela não tinha doído tanto no orgulho do jovem Reger como as anteriores. O pior agora eram aqueles olhares ao seu redor, que às vezes vinham e às vezes iam, meio tímidos, meio curiosos. Todos eles sentindo... Não vou nem pensar nessa palavra amaldiçoada. Danem-se todos eles que a sentem. Eles não fazem a mínima ideia.

Dentro da Garganta, Reger não podia ver o sol, mas soube pela cor do céu que a noite estava chegando. Ele tocou seus pés naquele chão virgem e sentiu uma agonia crescendo no peito. Estou perto. Vicory segurava uma espada e olhava para dentro da entrada da caverna que se estendia como um portão para a escuridão. Lá a luz nunca entrava, pois sua posição dentro da Garganta a protegia do sol que nascia. As pedras lá no alto impediam que o sol viesse do oeste. Uma rotina que se seguia todos os dias naquele deserto arenoso das terras ermas.

Quando todos estavam em segurança, e com armas nas mãos, começaram a andar. Reger carregava uma tocha na mão esquerda e sua espada na direita. A descida não tinha sido tão difícil como esperava. Mas alguns poucos esqueletos comidos pela areia indicavam que tiveram sorte. Nada de ventos, nada de chuvas. Está tudo dando certo.

Se aquele era o portão do inferno, talvez a morte não fosse algo tão ruim assim.

– Dizem que isso aqui foi feito quando um pedaço de Illuni caiu do céu. Mas se foi mesmo, onde ele está? – perguntou Lem, quebrando o silêncio.

– Quem se importa? – falou Vicory, visivelmente nervoso, e então todos voltaram a ficar calados por um bom tempo. O mercenário acendeu outra tocha e eles passaram a andar fitando a passagem que se seguia sinuosa, sempre em frente, sempre para baixo.

Em outro momento, Reger nunca poderia imaginar que estaria bem fundo, dentro da Garganta, indo em direção aos seus segredos. Muito menos que estaria acompanhado. Havia sido muito difícil convencer Vicory, Lem e Gorkuff a seguirem-no, ainda mais porque não podia persuadi-los com palavras tocantes. No entanto, parece que ele pôde sentir algo o guiando quando entrou naquela taverna, na beira da estrada, e sentou perto dos três, no dia que saiu da tenda em Dink-Rabur.

“Você sabe quem eu sou, garota? Sou Vicory, o homem que escalou as montanhas do norte, mijou nos pés dos titãs e voltou vivo para contar a história”, se gabava o mercenário, tentando agarrar na aba da saia de uma das atendentes. “Você pode escalar minha montanha, se quiser”.

“Ou a minha também”, Lem havia se intrometido, para depois continuar. “Diga a ela, Gork, como nós alcançamos a Espada do Mundo, o pico mais alto de todos os reinos juntos. E como nós descemos o abismo da Ilha Virgem, para saquear aquele navio de corsários bem embaixo dos narizes deles. Diga a eles”.

E então, Gork, que Reger acabou conhecendo depois como Gorkuff, contou para todos como eram tão bons naquilo que faziam: escalar e descer de muros, paredes, ou quaisquer obstáculos, fossem eles feitos pelos homens ou pelos deuses.

“E A Garganta? Vocês nunca estiveram lá”, a mulher perguntou, após voltar com novas canecas de cerveja. “Nós já vimos por aqui pequenos diabos, homens de pele cinza, do tamanho de pigmeus, só que rápidos. Eles vêm durante a noite, chupam o sangue de bois e cabras e voltam para as profundezas do inferno, lá dentro, n'A Garganta”, o rosto da mulher ficou obscuro, e por um momento Reger sentiu seu sangue gelar ao lembrar dos olhos rubros fitando-o na escuridão. “Dizem que lá é o inferno e que ninguém que entra pode sair vivo. Se sair, nunca mais será o mesmo”.

“Deite comigo hoje”, falou Vicory, para a garota, “e descerei A Garganta”.

“Desça A Garganta e então deitará comigo”, ela respondeu, saindo logo em seguida sob os uivos e aplausos dos homens que estavam sentados ao redor.

“Depois que eu descer A Garganta vou poder me deitar com quem quiser, então é melhor aproveitar enquanto ainda estou aqui”, gritou Vicory, para o deleite de Lem e o olhar divertido de Gorkuff.

Depois daquilo, Reger havia os interpelado com sinais, fazendo gestos que lembravam ouro e apontando para dentro de sua própria garganta. Uma tarefa desgastante e que ele odiava.

“O que vocês acham? Ele está propondo ouro para que desçamos com ele. E pelo o que entendi boa parte do que encontrarmos lá embaixo”, afirmou Gorkuff.

“E como podemos saber se ele é um homem de palavra?”, Vicory fez uma careta e depois bateu com a palma da mão direita na testa, fingindo surpresa. “Ah, esqueci. Ele não fala, então não é um homem de palavra”. Lem riu da piada, mas Reger já havia escutado-a várias vezes, então os ignorou.

As palavras foram e voltaram, piadas surgiram e morreram, até que Gorkuff convenceu seus amigos. Eles argumentaram que podiam muito bem descer sozinhos e pegar tudo que estava lá embaixo, mas Gorkuff falou que uma espada a mais era sempre bem vinda, principalmente no que diz respeito aos mistérios da terra. E do inferno. Apesar de todos os seus problemas, Reger sabia que sua aparência inspirava respeito e medo. Muitos homens já haviam derramado seus sangues na sua espada por piadas no momento errado. Para a sorte de Vicory, aquele era o momento certo.

Após pensar no mercenário, Reger voltou as atenções ao tempo presente quando o viu correr para as paredes d’A Garganta.

– Olhem isso aqui. É ouro. É ouro – Vicory gritou, esfregando as rochas com um lenço. Os outros correram para ver a descoberta, mas por mais que o brilho dourado chamasse a atenção de Reger, ele não sentiu a mesma felicidade.

“Há muitas outras glórias esperando por você, Reger, se seguir em direção ao norte, dentro d'A Garganta. É lá que tudo isso lhe espera...” As palavras da selvagem não saíam de sua cabeça. Mas ela estaria falando de ouro? Não era possível. Não fazia sentido. Ele perguntara quem ela era. “Alguém em quem você encontrará o som através do silêncio no momento necessário, e que lhe dará de volta algo que foi perdido”.

Ouro nunca iria recuperar seu orgulho.

Foi então que Reger sentiu um leve formigamento no peito. Ignorando os homens, ele continuou a andar, até que a viu. Cravada no chão, a lâmina escura refletindo estranhamente o brilho fosco da tocha, e o punho bem trabalhado em prata e ouro.

– Reger... – o mesmo sussurro dos seus sonhos ecoou em algum lugar na sua mente, mas ele não estava aflito agora. – Reger... – era ela, a espada, quem falava com ele.
Reger não parou para pensar. Sem titubear, puxou a espada negra, que refletia seus olhos cinzentos na lâmina, e ela era tão linda. “Sou eu e você agora, Reger... eu e você”.

– Isso fica com a gente – quem havia falado era Vicory, meio que escondido pelas sombras. Reger se virou e viu que ao seu lado estava Lem, segurando uma machadinha em cada uma das mãos e ostentando um sorriso meio torto no rosto. Reger soltou a tocha no chão e segurou sua nova arma com as duas mãos. E como ela era leve.

De repente, Gorkuff passou correndo entre ambos e parou na frente de Reger, mas virado para seus companheiros.

– Fizemos um trato. Teremos o ouro. Deixem-no com a espada, seus bastardos gananciosos. Não vou sujar meu nome por ela.

– Eu a quero para mim – gritou Vicory, levantando sua própria arma sobre a cabeça, e então uma discussão se iniciou. Mas Reger não escutava mais nada, a não ser aquela voz gelada e penetrante, chamando seu nome.

– Reger... Apenas eu e você, Reger. E ninguém mais. Ninguém...

Não precisou que ela repetisse a frase. Em um impulso que fez seu sangue ferver, ele estocou fundo a lâmina negra nas costas de Gorkuff, sentindo os ossos de sua coluna estraçalharem. Torceu a espada e a puxou. O homem nem gritou enquanto seu sangue e sua alma esvaíram do corpo.

– Sim, Reger...

Lem deu uma corrida desesperada para a frente, e Reger, já esperando, atacou de cima para baixo, com um arco poderoso. O jovem tentou aparar o golpe cruzando as machadinhas, mas o metal escuro ultrapassou a defesa, crânio e só parou na altura do pescoço, com o líquido escuro espirrando no rosto de ambos.

À sua frente, Vicory ficou paralisado por um momento. Depois, se ajoelhou e jogou a espada ao lado. Não olhava no rosto de Reger e choramingava como uma criancinha, murmurando pedidos de piedade. Reger olhou para sua espada negra.

Apenas eu e você?, ele pensou.

– Apenas eu e você – ela concordou.

Sentindo uma vontade forte que o impulsionava à loucura e o gosto amargo do sangue de Lem na boca, ele puxou a cabeça de Vicory com sua mão esquerda e arrancou-a do corpo com um golpe, abatendo-o como uma galinha. Olhou naqueles olhos escuros do maldito e gostou do que viu. Não era o olhar da pena, que tanto o atormentava, e sim do medo e do respeito, um adorno gostoso para seu orgulho.

E agora?, perguntou à sua nova amiga, em meio a um frenesi incontrolável que o fez se sentir invencível.

– Vamos fazer todos ouvirem você, Reger. Todos eles.

Ele não podia esperar uma resposta melhor.
Editado pela última vez por laharra em 24 Fev 2013, 23:34, em um total de 1 vez.
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O Som do Silêncio: Parte IV - A decisão
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O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor faprasem em 26 Jan 2008, 19:03

EXCELENTE!
O primeiro capítulo cria um clima introspectivo muito legal. E o final do segundo capítulo, simplesmente MUITO BOM.
Queria jogar rpg com um mestre que falasse como você escreve cara...seria tão emocionante...
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O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor laharra em 31 Jan 2008, 16:13

Obrigado pelos elogios, Faprasem. E seu comentário sobre o final do segundo capítulo me animou, pois eu sempre tento fazer isso, acabar com uma frase de efeito, que não soe forçada e ao mesmo tempo dê um gostinho de "quero mais".

Eu já fui mestre de RPG, mas em um passado bem distante. Sempre preferi mestrar do que jogar, não sei explicar o porquê (e sempre AD&D ou D&D). :cool: E a decrição d'A garganta foi baseada em um local bem parecido que vi em um programa do Discovery Channel, só que lá era na mata. Entim, televisão às vezes também é cultura.

Abraços.
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O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor Dahak em 03 Fev 2008, 21:00

Opa, tudo bem Iaharra?
Espeor que sim.
Fico feliz que tenha seguido meu conselho ^^"

Bom, demorei um pouco para tecer os comentários, mas, enfim, cá estou!

Quero começar fazendo um elogio a clareza da sua narração. Você é bem coeso, de forma que dificilmente temos de ler duas vezes um mesmo trecho para assimilar as informações.

Em alguns momentos eu acho que seus parágrafos ficam um pouco "ricos demais". Você colopca tanta informação neles que eles ficam um pouco pesados. Reitero, no entanto, que não é difícil de ler, mas dá uma cara menos amigável, porque temos de mastigar muitas informações antes de uma pausa.

Eu espero não soar muito controverso nesses apontamentos acima ^^"
Qualquer coisa, se precisar, explico de outra forma ;)

De uma forma geral, a primeira parte me agradou mais. E não porque a segunda está ruim, longe disso. Em verdade, achei a primeira mais consistente.

Durante a segunda, fiquei um pouco incomodado com os nomes. Aliás, com algumas repetições, como nesse parágrafo:
Foi muito rápido, mas logo depois de Vicory falar, Reger viu Lem dando um passo para frente, querendo ver um pouco mais longe. O terreno arenoso cedeu, e o jovem escorregou para o abismo. Reger gritou, fazendo um berro gutural, para avisar a Gorkuff, que estava mais próximo. Ele entendeu e se jogou no chão em direção ao buraco, agarrando Lem pela camisa. Reger segurou Gorkuff e prendeu seus pés em uma rocha, para não ser arrastado junto. Virou a cabeça para o lado e viu Vicory olhando atônito para ele.

Creio que uma reorganização para empregar alguns pronomes ou outras formas de se referir a determinadas personagens viria a calhar.

De qualquer forma, esses meus apontamentos são apenas para detalhes, nada que comprometa a qualidade da história. E me desculpe se soei chato, mas creio que são com críticas e trabalho que se talha nossos talentos =)

Até a próxima.

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O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor Ermel em 03 Fev 2008, 21:37

Estou com essa palavra no momento na cabeça, que pode parecer cafona, mas descreve legal, Glamouroso! :P.

Achei o grupo de mercenário realmente interessante, a ponto de ter, por um momento, um pouco de afeto por todos eles. O jeito como agem, como são, mesmo que rápido, foi criado e ja caiu no meu gosto. Uma pena terem morrido.

Esse negocio de espada me lembrou Legend of Legaia e Tales of Destiny. Mas realmente, com esse modo fantastico e envolvente com que criou o grupo, se estender pelos outros capitulos valerão mais que a pena! Meus sinceros parabens!
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O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor laharra em 06 Fev 2008, 16:56

Fala, Dahak, está tudo bem comigo, sim. Obrigado por perguntar :cool:

Mais uma vez, agradeço pelo comentário. Fico feliz que minha narrativa esteja coesa e envolvente ao mesmo tempo. Sobre os parágrafos ricos demais que você citou, talvez seja pelo fato de eu ter dificuldades em me adaptar a contos. Estou acostumado a escrever coisas grandes, bem mais elaboradas, e aí tentei ser mais objetivo para o texto não ficar grande demais, já que seria postado no fórum.

Quanto ao parágrafo específico que você citou, concordo que soou repetitivo. Por sinal, foi o trecho que empaquei um pouco. No entanto, não achei solução melhor e lendo e relendo, pensei que não atrapalharia a leitura. Vou pensar mais sobre ele no futuro.

E, por favor, não peça desculpas. Você não foi chato, e sim atencioso e solícito em vir ler o meu texto e me apontar falhas, o que me deixa satisfeito. Agradeço por isso :aham:

Abraços e até mais.

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Ermel,

Agradeço por ter voltado para acompanhar o segundo capítulo. Fico satisfeito em saber que você sentiu afeto pelos mercenários. Gosto quando isso acontece com figurantes, porque é uma prova que o leitor está se comprometendo em ler a história e prestar atenção em todos os detalhes. Espero que você também esteja gostando de Reger.

Se você puder me falar em que a minha história lembra Legend of Legaia ou Tales of Destiny eu agradeçeria, já que não conheço. Até pesquisei, mas não achei nada específico. Seria até interessante para eu não acabar repetindo algo que já foi criado.

Abraços.
Tentando encontrar inspiração para terminar o conto abaixo:
O Som do Silêncio: Parte IV - A decisão
Reger está às vésperas de uma batalha onde decidirá seu futuro. Durante o que podem ser seus últimos momentos com a Espada e com Alyse, ele se pega pensando sobre a validade de suas aspirações. Acompanhe o conto no link a seguir:
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O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor Dahak em 07 Fev 2008, 02:12

Opa, podexá que estarei aqui para ler seus novos contos ^^"

Abração!


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O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor Ermel em 07 Fev 2008, 13:06

O fato da espada, arma dominar o dono a ponto de fazer essas coisas que não pretendia, deixar as emoções contidas dominarem, etc e tal. Muitos outros jogos, revistas usam desse recurso, não que desmereça, ao contrario, mostra o conhecimento amplo, e tal talento de, que se souber trabalhar de tal forma a criar uma dinamica muito mais interessante que os dos jogos. E é o que acredito que você fara, já que seu talento muito me cativou.

Agora é esperar pelas continuações e futuros contos : )
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O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor Elara em 07 Fev 2008, 14:46

Laharra,

Você é o cara. Adorei a forma como usa as descrições, o modo como envolve o leitor, o trato com as palavras. Parabéns.

Estou no aguardo da continuação.^^

Chero.
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O Som do Silêncio - Capítulo IV (A decisão)

Mensagempor laharra em 09 Fev 2008, 13:21

Ermel, as únicas espadas inteligentes que eu conhecia antes de escrever esse conto eram uma da antiga Dragão Brasil, que comandava insetos, e outra do jogo Baldur's Gate II, que era sarcástica e sempre tirava uma piada com o personagem que a carregava :cool:

Elara, obrigado pelo comentário. Estou trabalhando sem muita pressa na continuação para ter um resultado satisfatório. Dentro de alguns dias ela deve estar saindo. :cool:

Valeu, galera!
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O Som do Silêncio: Parte IV - A decisão
Reger está às vésperas de uma batalha onde decidirá seu futuro. Durante o que podem ser seus últimos momentos com a Espada e com Alyse, ele se pega pensando sobre a validade de suas aspirações. Acompanhe o conto no link a seguir:
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