Demorou um pouco, mas saiu. Decidi que o conto terá mesmo cinco capítulos, todos eles mais ou menos do mesmo tamanho para não afugentar possíveis novos leitores. Continuem comentando, pessoal.
CAPÍTULO III
A mensagem
UMA CORUJA PIOU em algum lugar obscuro dentro da floresta. Reger sempre escutara dizer que aquilo era um mau presságio, um aviso dos deuses de que alguma coisa iria dar errado para o bastardo infeliz que o ouvisse. Mas se era realmente verdade, eles iriam ter muito trabalho para uma noite, pois todos os seus homens, lá atrás, também a tinham escutado.
Reger respirou fundo, sentindo seus pulmões queimarem com o ar frio, escarrou forte e cuspiu no chão. Não era hora de pensar em deuses. Esta é uma noite para os homens. Não haveria espíritos, olhos vermelhos, demônios ou medo. Era o momento de fazer todos escutarem sua mensagem, mesmo que ele não tivesse voz para passá-la.
À sua frente, a cerca de quinhentos pés, estavam as muralhas da cidade de Winsc, pesados blocos de pedras postos um sobre o outro, se erguendo como montanhas. Não havia luzes para se ver lá em cima, apenas o brilho da lua refletido em uma lança, ou em um elmo, sempre que um guarda caminhava de um lado para o outro.
Atrás de Reger, passos soaram rápidos.
– Devemos ir agora, meu senhor? – perguntou Mulgruv, seu braço direito, postando-se do seu lado e olhando para a frente, para o oeste, para o portão do mundo civilizado.
Por que não? Vamos logo e acabamos com isso, pensou Reger, mas não se mexeu. Tanta coisa havia acontecido desde que entrara naquela cabana da selvagem, há meses atrás. Depois veio A Garganta, o ouro, os escravos, e então um exército. Só que, mais importante do que tudo aquilo, era sua amiga.
Ele a puxou da bainha, e Ela sussurrou enquanto saía. Um silvo que antecedia a morte e o prazer, uma combinação amarga e ao mesmo tempo doce que preenchia o ouvido de Reger. Você pode ver? Foi lá que tudo começou, ele analisou o metal, que se misturava com o céu negro do horizonte.
– Você sabe o que fazer, Reger – Ela cochichou em sua mente, e na mesma hora ele sentiu um calor morno tocar seu coração. – Eu estarei com você o tempo todo, mas não preciso falar. As decisões são suas.
Ela sempre dizia aquilo, mas as decisões não eram só dele. Reger sempre a ouviu, desde o primeiro momento, quando matou os homens n’A Garganta. Depois, tinha ponderado sobre a morte de Gorkuff. Talvez o homem não precisasse morrer, mas as palavras tinham sido claras. “Apenas eu e você, Reger. E ninguém mais. Ninguém...” E havia aquele calor. Aquela força. Era apenas impossível de resistir.
– Meu senhor? – perguntou Mulgruv, dessa vez virando seus olhos verde-cinzentos para fitá-lo. – Você está bem?
Reger retribuiu o olhar e apenas sorriu. Nunca estive tão bem em toda minha vida. Colocou seu elmo na cabeça, empurrando até sentir que o forro de couro estava bem ajustado, girou sua amiga na mão, olhou para o céu, e esperou. Ao seu redor, homens se arrumavam, tilintando cotas de malha, bordas de escudos, espadas e machados. Outros rezavam para os deuses do ocidente. Alguns esvaziavam as tripas lá atrás, para acalmar os ânimos. A fedentina da guerra. Merda, suor e sangue.
– Falta o sangue – Ela falou.
Por pouco tempo, ele pensou. Estou indo atrás dele.
E então ele foi. Em cima de sua cabeça, as nuvens escondiam a lua, dando a cobertura necessária. Reger correu com cerca de duas centenas de homens pelo terreno aberto em direção aos inimigos. Dos outros lados da cidade, outros estariam fazendo o mesmo, em um ataque simultâneo que deixaria os defensores perdidos.
Apenas quando estava bem próximo das muralhas, um grito de puro terror ecoou lá do alto. E então veio um zumbido, quando a primeira das flechas passou perto de sua cabeça.
Começou.
Reger levantou sua amiga, apontando para o topo da muralha, e todos entenderam. As escadas de madeira e corda começaram a subir acima das cabeças dos homens. Uma, duas, cinco, oito, dez... Lentas, elas iam se inclinando, formando um arco no vazio até beijar as paredes de pedra. Agora, o mundo havia virado uma imensa colméia, com os zumbidos ecoando sem parar. Uma flecha de pena branca atingiu em cheio o olho de um homem que havia acabado de colocar o pé no primeiro degrau e ele foi jogado para trás, grunhindo. Seu cadáver foi puxado e outro homem começou a subir no lugar.
Um corpo caiu lá de cima, abatido por um dos arqueiros de Reger. Seus homens estavam gritando agora, dizendo a eles próprios que subissem ou morressem. Outros se engasgavam com sangue. E alguns apenas olhavam, esperando a vez de participar daquele inferno.
Uma flecha atingiu o elmo de Reger, e o impacto o fez titubear no chão ensangüentado. Ele praguejou em sua voz interior e apanhou o escudo de um dos mortos. Encaixou as alças no braço esquerdo e fez força para sentir seu músculo apertando as tiras de couro.
– Reger, a flecha – Ela gritou, e ele levantou o escudo bem a tempo de pegar uma flecha inimiga que atingiria seu peito. Ela sempre fazia aquilo.
Continuou se protegendo e mais corpos caíram, um deles bem perto de sua perna. Reger saltou para o lado antes que aquele peso o esmagasse. Eu tenho que subir lá, eles estão morrendo, ele pensou, mas antes que pudesse andar em direção à escada mais próxima, escutou o sussurro.
– Não, Reger. Não vá.
Mas eu sou o líder desses homes. Se eu não for, quem eles irão seguir?
– Não vá, Reger. Espere pelo trovão.
Reger sabia que tinha de esperar pelo trovão, mas ele deveria ter vindo rápido. Aquela demora poderia pôr tudo a perder. Todos os seus planos, sua confiança frente aos homens. Sua reputação. E mais do que tudo, a possibilidade de se fazer escutar, ecoando sua mensagem por toda a eternidade.
A decisão é minha.
– Nunca duvidei disso.
Pela primeira vez Reger hesitou. Pela primeira vez desde que esteve com Ela, ele não soube o que fazer. Foi então que ele sentiu a força morna saindo do seu braço direito e percorrendo seu corpo e trazendo pensamentos mais claros. Acreditaria nela. A decisão seria dela, mais uma vez.
E quando o primeiro dos homens finalmente subiu na grande muralha de Winsc, o trovão chegou. Ele veio como um lamento dos céus e dos deuses que pairavam naquela cidade sagrada. O som percorreu o campo sombrio, enchendo os ouvidos de cada um dos homens e dando a esperança que Reger tanto esperava.
– A trombeta! Para o portão. Para o portão, bastardos miseráveis. Esqueçam as escadas. Para a merda do portão – gritou Mulgruv.
Mas Reger não precisou escutar aquilo. Ele era o primeiro a correr e foi o primeiro a chegar na boca escancarada que o convidava. Alguns dos seus homens lutavam contra os guardas de Winsc já dentro da cidade para manter o portão aberto.
O grupo de Reger atingiu os inimigos em uma carga frenética, como um cavalo de batalha em cima de um homem a pé. Ele esmagou a cabeça de um com seu escudo, estocou fundo na barriga do outro, chutou o rosto do terceiro e seguiu cortando de um lado para o outro, levantando jorros de sangue e gritos de homens desesperados. Agora os bastardos já sabiam. A cidade caía, e com ela viriam seus malditos orgulhos. Suas malditas honras. Suas vidas.
Outros chegaram e morreram. Mas eram poucos. Em certo momento, Reger apenas parou para olhar aquela defesa patética, a fortaleza que subjugara para obter a passagem entre o oriente e o ocidente. O centro do mundo conhecido. Ele percebeu que o momento do ataque havia sido essencial para a vitória. Ela havia dito para esperar. O grande exército de Winsc estava no oeste, lutando pelo Rei. Aqueles bastardos que estavam morrendo na cidade eram a escória. Apenas a escória. Talvez por isso se sentisse tão vazio.
– Lá em cima. Lá está o que você procura.
Ele levantou os olhos e viu do que Ela falava. O pequenino castelo, que ele se acostumara a observar do longe, agora parecia muito mais imponente em cima do morro. Atrás da construção de pedras marrons, a lua saiu de seu esconderijo nas nuvens para brilhar no infinito. Reger soltou seu escudo, viu Mulgruv olhar em sua direção e fez sinal para que o homem cuidasse de tudo.
O caminho se estendeu sinuoso como uma serpente, com degraus que pareciam não acabar. Lá atrás a cidade chorava com os gritos dos últimos homens mortos. Lá na frente, alguém mais iria chorar, então Reger apressou o passo para acabar logo com a agonia.
– Você sabe o que fazer, Reger – Ela falou. Aquilo o irritou, mas tentou disfarçar o sentimento, esperando que pudesse escondê-lo de sua amiga. Sabia que fazer aquilo com Ela em sua mão era como tentar se enganar, mas não havia palavras que pudessem ser pensadas naquele momento.
Sem saber o que o esperar, ele entrou pelas portas abertas do castelo. Não havia guardas no luxuoso salão principal. Não havia luta ou resistência. Ao invés daquilo, apenas o silêncio e uma mulher parada bem no centro. Seus cabelos, iluminados pelas tochas, eram uma mistura de castanho cor de mel com um loiro escurecido. Os expressivos olhos grandes e marrons piscavam e transbordavam nervosismo. Assim como suas mãos magras, que agarravam inconscientemente a barra do vestido branco. No topo de sua cabeça, uma frágil coroa de brilhantes.
– Bárbaro – ela começou, tentando falar com uma voz alta, mas soou vacilante. – Eu, princesa Alyse de Hamma, regente da cidade de Winsc na ausência do meu pai, Harillin II de Hamma, e dos meus irmãos-herdeiros Harilin III, Borgeon e Benfred, lhe peço que pegue o que quiser e depois saia de nossa cidade sagrada. Não há nada para você aqui.
Em outro momento, Reger sorriria daquela cena patética. Mas não havia graça no rosto da princesa.
– Ela mente – sua amiga falou, tirando a concentração de Reger. Sem ação, ele apenas continuou olhando para Alyse até que novos passos foram ouvidos de dentro do castelo. Um pequeno garoto havia aparecido do nada e corria em direção da princesa.
– MATE-O – a espada gritou em sua mente. Reger se assustou. Ela nunca gritava. “Mate-o antes que ele fale com a princesa. É a criança, Reger. É o mais novo. Mate-o!”
Reger se perdeu entre a vontade que parecia querer tomar conta do seu corpo e os olhos tristes de Alyse.
– NÃO –, a princesa também gritou. – Volte, Ben!.
– Rápido, Reger. Mate o garoto – a espada insistiu.
Sua mão direita começou a levantar, vagarosamente. A princesa viu e correu para abraçar Benfred, enquanto chorava e soluçava. Reger andou até eles, com sua amiga segura nas duas mãos. Sentia-se perdido, no mesmo frenesi que o levara a matar Gorkuff, em um passado que agora parecia tão vivo em sua mente. Mas aprendera a confiar n’Ela.
– Isso, Reger. Confie em mim.
E quando estava prestes a dar seu golpe, ele viu o que precisava para tirá-lo daquele estado de loucura. Alyse se separou de Benfred e falou baixinho com ele, ao mesmo tempo em que gesticulava com a mão, fazendo sinais com os dedos. Alguns batiam no peito, outros no ombro, outros na cabeça.
– Vai ficar tudo bem – a princesa sussurrou para o garoto, entre outras palavras que saíam junto dos sinais. Benfred se comunicava com ela da mesma forma, mas não havia voz na sua boca. Havia apenas a silenciosa voz de suas mãos.
Lá fora, o trovão soou duas vezes, indicando que a vitória estava consumada. O tremor no céu vindo das trombetas ecoaria pelas planícies e chegaria nos senhores do leste e do oeste, passando a mensagem de Reger para o mundo. Mas naquele momento, olhando para os herdeiros de Minsc, ele percebeu que a mensagem ficaria incompleta. A decisão era apenas dele.
– Isso é um erro, Reger – sua amiga falou, um sussurro cortante que lhe arrepiou os pêlos das costas e dos braços. – É para ser apenas eu e você, Reger. E ninguém...
A mensagem morreu no exato momento em que a espada voltou para a bainha.