O Som do Silêncio (Finalizado)
Enviado: 07 Dez 2007, 00:45
O Som do Silêncio
Estilo: Fantasia medieval
CAPÍTULO I
O toque
– ABRA SUAS MÃOS e deixe-me sentir seus medos e receios. Deixe-me entender o que você pensa e então ajudá-lo a superar tudo isso.
A voz da mulher pareceu sincera, e havia alguma coisa naqueles olhos castanhos claros que acentuavam a ordem. Era como se Reger estivesse hipnotizado pela forma que ela o olhava e também como as palavras saiam cândidas daquela boca carnuda. Havia uma harmonia tão grande naquele rosto que era impossível ignorar qualquer sugestão vinda dela. Ele aceitou a proposta.
A mulher tomou suas mãos com um toque frio em cada uma delas, liberando uma energia hipnótica no corpo robusto de Reger. Ele tremeu, assustado pelo contato nervoso, e desejou ter a sua espada na bainha para tocá-la em um pedido silencioso de proteção aos deuses dos guerreiros. Ela sorriu e então fechou os olhos para iniciar o transe mágico que supostamente livraria Reger de todos os seus problemas.
E agora?, ele se perguntou, olhando para aqueles cabelos negros que desciam ensebados até o chão, onde estavam sentados de pernas cruzadas. A espera e o ócio eram coisas que não combinavam com Reger. Mais para passar tempo do que propriamente por curiosidade, ele perscrutou cada centímetro daquela tenda escura, parando seu olhar em cada pequeno boneco de penas e totem de madeira. Peles de urso cobriam espaços esburacados no tecido do abrigo, enquanto dentes afiados de predadores estavam espalhados em um círculo perfeito ao redor dos dois. Para evitar os maus espíritos, um selvagem com o cabelo espetado havia lhe dito. Na primeira vez que havia visto a barreira, Reger se questionou como aquilo poderia impedir um ser de outro mundo de entrar no lugar. Eram apenas ossos. Se ele podia passar, por que uma alma não podia?
Com uma dificuldade enorme, teve que engolir sua saliva para não cuspir de desgosto naquele ambiente supostamente sagrado. Seria uma vergonha ser expulso dali como um animal e ainda ser desrespeitado por aqueles deuses selvagens, ainda mais quando precisava tanto deles. Apesar de não ter certeza absoluta sobre a ascendência divina da mulher ou da vila, sentir-se como um mentiroso que arrisca tudo era muito mais confortável do que não tentar nada para acabar com aqueles sonhos profanos. É bom que me ajudem agora, deuses. Ou então vão perder a oferta de um bode. Peguem ou deixem, devaneou.
Uma tremida sacudiu a mulher e a mão de Reger, que tirou sua visão de uma pequena cabeça encolhida em uma estante e a levou novamente até a selvagem. Ela se sacudiu mais uma vez, e outra e outra. Então ela parou, e o fogo das velas bruxuleou rapidamente, até que foi minguando e chegou ao ponto em que não restava nada a não ser a escuridão naquela tenda sombria das terras de Dink-Rabur.
Subitamente, dois pontos vermelhos surgiram na penumbra para fitar Reger, que praguejou mentalmente e puxou suas mãos do contato com a mulher. Mas elas estavam presas com uma força que nem seus musculosos braços puderam subjugar. Ele puxou, fez força e tentou se levantar. Tudo em vão.
– Não resista – a mulher falou com ele, mas agora a voz era urgente.
O que era respeito agora tinha virado medo por sobrevivência. Reger respirou fundo e puxou novamente com todas as suas forças, sentindo o sangue fluir aos seus miolos e o deixar tonto. O seu corpo agora estava se paralisando aos poucos, ficando à mercê daqueles olhos vermelhos malignos que ele sabia muito bem o que significavam.
Um olho vermelho a te procurar e então um demônio irá te achar. Dois olhos vermelhos e o calor. Se renda, o maldito te pegou. Mais conhecido do que esse ditado apenas as lendas do surgimento dos reinos do oeste, e ainda que Reger tivesse achado a rima ridícula em outros tempos, ela agora não parecia tão engraçada.
– Eu não sou um demônio – a mulher voltou a falar.
Como ela pode saber o que eu estava..., Reger cogitou, mas a voz grave o interrompeu.
– Conte-me seus medos. Conte-me seus receios.
A armadura de desconfiança do guerreiro caiu. Havia tanto tempo que ninguém o entendia. Havia tanto tempo que ninguém o escutava. Quando lhe falaram que ali ele encontraria respostas, não imaginou que elas viriam assim, como uma conversa que há muito tempo ele não travava com ninguém. Que se danassem os olhos vermelhos, porque agora ele iria poder dizer o que sentia.
São os pesadelos, anseios que tomam conta de minha mente na hora do sono. É como se eu nunca pudesse voltar a dormir em paz novamente.
– Fale-me dos sonhos.
Há uma espada e sua lâmina é escura como a tinta dos papiros. Tão escura que é como se tivesse sido feita com um pedaço da noite. Há imagens irreais que aceleram meu coração. E também há uma voz, chamando meu nome, com uma urgência que gela meu espírito e me acorda, revelou Reger, fitando os olhos rubros.
– Sim, eu posso vê-la... Mas também sinto um mal abraçando a espada. Um mal antigo que ultrapassou gerações e que... Não...
A interrupção intrigou Reger.
O que foi que você viu?
– Você acredita nos deuses do ocidente, guerreiro?
No sol, na lua e na estrela vermelha? Aqueles que eles chamam de Selleni, Illuni e Rathni? Não sou um seguidor desses deuses.
– E em que você acredita?
Reger refletiu com a pergunta. Ele poderia muito bem dizer que não seguia nenhum tipo de religião, mas o simples fato de negar a crença em qualquer coisa o fez se sentir mal. Era como se ele não tivesse uma alma a zelar, ou um abrigo para seu espírito após a morte. Quando perguntavam aquilo pessoalmente, ele apenas apontava para sua espada e a conversa se encerrava.
Eu...
– Ainda não achou seu caminho. Eu entendo. Mas há uma estrada que você pode seguir. Nela, você vai achar a paz dos sonos, e também a paz que lhe foi tomada durante sua infância. E há muitas outras glórias esperando por você, Reger, se seguir em direção ao norte, dentro d’A Garganta. É lá que tudo isso lhe espera”
Como você pode saber disso? Quem é você?
– Alguém em quem acreditar. Alguém em quem você encontrará o som através do silêncio no momento necessário, e que lhe dará de volta algo que foi perdido.
O forte aperto que prendia as mãos de Reger afrouxou, e os olhos vermelhos da selvagem voltaram ao seu tom castanho. Ela respirou de supetão, como se estivesse buscando o ar desesperadamente. Obrigado, ele pensou, sem esperar respostas. Levantou-se, observado pelo olhar atônito da mulher, e saiu da tenda, protegendo os olhos da forte luz do sol da manhã.
Subiu no cavalo e então galopou como se o diabo estivesse em seu calcanhar, sentindo que um futuro novo o esperava.
Um futuro em que pudesse ser escutado.
E principalmente entendido.
Estilo: Fantasia medieval
CAPÍTULO I
O toque
– ABRA SUAS MÃOS e deixe-me sentir seus medos e receios. Deixe-me entender o que você pensa e então ajudá-lo a superar tudo isso.
A voz da mulher pareceu sincera, e havia alguma coisa naqueles olhos castanhos claros que acentuavam a ordem. Era como se Reger estivesse hipnotizado pela forma que ela o olhava e também como as palavras saiam cândidas daquela boca carnuda. Havia uma harmonia tão grande naquele rosto que era impossível ignorar qualquer sugestão vinda dela. Ele aceitou a proposta.
A mulher tomou suas mãos com um toque frio em cada uma delas, liberando uma energia hipnótica no corpo robusto de Reger. Ele tremeu, assustado pelo contato nervoso, e desejou ter a sua espada na bainha para tocá-la em um pedido silencioso de proteção aos deuses dos guerreiros. Ela sorriu e então fechou os olhos para iniciar o transe mágico que supostamente livraria Reger de todos os seus problemas.
E agora?, ele se perguntou, olhando para aqueles cabelos negros que desciam ensebados até o chão, onde estavam sentados de pernas cruzadas. A espera e o ócio eram coisas que não combinavam com Reger. Mais para passar tempo do que propriamente por curiosidade, ele perscrutou cada centímetro daquela tenda escura, parando seu olhar em cada pequeno boneco de penas e totem de madeira. Peles de urso cobriam espaços esburacados no tecido do abrigo, enquanto dentes afiados de predadores estavam espalhados em um círculo perfeito ao redor dos dois. Para evitar os maus espíritos, um selvagem com o cabelo espetado havia lhe dito. Na primeira vez que havia visto a barreira, Reger se questionou como aquilo poderia impedir um ser de outro mundo de entrar no lugar. Eram apenas ossos. Se ele podia passar, por que uma alma não podia?
Com uma dificuldade enorme, teve que engolir sua saliva para não cuspir de desgosto naquele ambiente supostamente sagrado. Seria uma vergonha ser expulso dali como um animal e ainda ser desrespeitado por aqueles deuses selvagens, ainda mais quando precisava tanto deles. Apesar de não ter certeza absoluta sobre a ascendência divina da mulher ou da vila, sentir-se como um mentiroso que arrisca tudo era muito mais confortável do que não tentar nada para acabar com aqueles sonhos profanos. É bom que me ajudem agora, deuses. Ou então vão perder a oferta de um bode. Peguem ou deixem, devaneou.
Uma tremida sacudiu a mulher e a mão de Reger, que tirou sua visão de uma pequena cabeça encolhida em uma estante e a levou novamente até a selvagem. Ela se sacudiu mais uma vez, e outra e outra. Então ela parou, e o fogo das velas bruxuleou rapidamente, até que foi minguando e chegou ao ponto em que não restava nada a não ser a escuridão naquela tenda sombria das terras de Dink-Rabur.
Subitamente, dois pontos vermelhos surgiram na penumbra para fitar Reger, que praguejou mentalmente e puxou suas mãos do contato com a mulher. Mas elas estavam presas com uma força que nem seus musculosos braços puderam subjugar. Ele puxou, fez força e tentou se levantar. Tudo em vão.
– Não resista – a mulher falou com ele, mas agora a voz era urgente.
O que era respeito agora tinha virado medo por sobrevivência. Reger respirou fundo e puxou novamente com todas as suas forças, sentindo o sangue fluir aos seus miolos e o deixar tonto. O seu corpo agora estava se paralisando aos poucos, ficando à mercê daqueles olhos vermelhos malignos que ele sabia muito bem o que significavam.
Um olho vermelho a te procurar e então um demônio irá te achar. Dois olhos vermelhos e o calor. Se renda, o maldito te pegou. Mais conhecido do que esse ditado apenas as lendas do surgimento dos reinos do oeste, e ainda que Reger tivesse achado a rima ridícula em outros tempos, ela agora não parecia tão engraçada.
– Eu não sou um demônio – a mulher voltou a falar.
Como ela pode saber o que eu estava..., Reger cogitou, mas a voz grave o interrompeu.
– Conte-me seus medos. Conte-me seus receios.
A armadura de desconfiança do guerreiro caiu. Havia tanto tempo que ninguém o entendia. Havia tanto tempo que ninguém o escutava. Quando lhe falaram que ali ele encontraria respostas, não imaginou que elas viriam assim, como uma conversa que há muito tempo ele não travava com ninguém. Que se danassem os olhos vermelhos, porque agora ele iria poder dizer o que sentia.
São os pesadelos, anseios que tomam conta de minha mente na hora do sono. É como se eu nunca pudesse voltar a dormir em paz novamente.
– Fale-me dos sonhos.
Há uma espada e sua lâmina é escura como a tinta dos papiros. Tão escura que é como se tivesse sido feita com um pedaço da noite. Há imagens irreais que aceleram meu coração. E também há uma voz, chamando meu nome, com uma urgência que gela meu espírito e me acorda, revelou Reger, fitando os olhos rubros.
– Sim, eu posso vê-la... Mas também sinto um mal abraçando a espada. Um mal antigo que ultrapassou gerações e que... Não...
A interrupção intrigou Reger.
O que foi que você viu?
– Você acredita nos deuses do ocidente, guerreiro?
No sol, na lua e na estrela vermelha? Aqueles que eles chamam de Selleni, Illuni e Rathni? Não sou um seguidor desses deuses.
– E em que você acredita?
Reger refletiu com a pergunta. Ele poderia muito bem dizer que não seguia nenhum tipo de religião, mas o simples fato de negar a crença em qualquer coisa o fez se sentir mal. Era como se ele não tivesse uma alma a zelar, ou um abrigo para seu espírito após a morte. Quando perguntavam aquilo pessoalmente, ele apenas apontava para sua espada e a conversa se encerrava.
Eu...
– Ainda não achou seu caminho. Eu entendo. Mas há uma estrada que você pode seguir. Nela, você vai achar a paz dos sonos, e também a paz que lhe foi tomada durante sua infância. E há muitas outras glórias esperando por você, Reger, se seguir em direção ao norte, dentro d’A Garganta. É lá que tudo isso lhe espera”
Como você pode saber disso? Quem é você?
– Alguém em quem acreditar. Alguém em quem você encontrará o som através do silêncio no momento necessário, e que lhe dará de volta algo que foi perdido.
O forte aperto que prendia as mãos de Reger afrouxou, e os olhos vermelhos da selvagem voltaram ao seu tom castanho. Ela respirou de supetão, como se estivesse buscando o ar desesperadamente. Obrigado, ele pensou, sem esperar respostas. Levantou-se, observado pelo olhar atônito da mulher, e saiu da tenda, protegendo os olhos da forte luz do sol da manhã.
Subiu no cavalo e então galopou como se o diabo estivesse em seu calcanhar, sentindo que um futuro novo o esperava.
Um futuro em que pudesse ser escutado.
E principalmente entendido.